sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Presente




"Tem mais presença em mim
o que me falta."
Manoel de Barros



Presente bom, muitas vezes, é presença. Vale agradecer pelas presenças que não partem de nós, independente dos humores, dos desabafos, dos erros todos. Presente de estar, sem data para sair de cena, sem tendência a deixar na mão.

Quem é presente sabe quando calar, mas também quando colocar a boca no trombone. Estabelecem-se nessa relação – metaforicamente falando, meus caros - os tais tapas e beijos da canção.

Se o profeta se fizesse presente, certamente perceberia dar aquele nó nos seus pensamentos sempre tão profundos. Na teoria, a sabedoria pode ser extremamente elegante, dotada de todos os preceitos da etiqueta. Porém, na prática ela é da simplicidade das salas cheias de gente batendo papo sobre quem, como e quando, despreocupados com previsões, cometendo gafes em favor da benquerença. E ao mesmo tempo, curando o espírito dolente sobre o qual o profeta tece as teorias de fim do mundo, início da era. Sobre os recomeços dos quais fala a poesia tagarela.

Presentes permanecem os que não abrem mão do outro ao sinal de dificuldades. Quem não adota a mentira como fio condutor da união das suas histórias. Ser presente não é tarefa fácil, ainda mais em tempos em que a individualidade impera, apesar de tocantes e constantes ações voluntárias, e das reações aos distúrbios que acossam nossa humanidade.

Ser presente é coisa para quem não se importa em correr o risco de se apaixonar pela pessoa ou pela ideia, quem não cultiva temor por ser assimétrico demais para caber na simetria dos planos traçados.

Porque planos traçados são apenas corrimões na escadaria da nossa vivência. Às vezes nos sustentam no caminho, impedindo-nos de ir de vez ao chão, mas em outras são apenas apoios, uma segurança mínima no momento das escolhas determinantes.

Quem é presente é presente também. Pode não vir com laço, embrulhado em papel colorido. Pode nem mesmo ser tão sorridente quanto como ficamos ao desembrulhar o pacote. Porém é presente de um jeito que às vezes nos dá nó na garganta, tamanha emoção é tê-lo assim: presente.

Para os que apreciam as festas: brindes sinceros. Para os que preferem o aconchego do lar: bons filmes. Para as crianças: playmobil. Para todos: presenças que sejam presentes.


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Feeling Good

Hoje Nina Simone faz as honras da casa!




'It's a new dawn
It's a new day
It's a new life
For me
And I'm feeling good...'

domingo, 27 de novembro de 2011

Da Coragem




Coragem não é ausência de medo, veja bem. Coragem é uma forma de desprender o sonho da vida. Não deixa de ser uma estratégia para andar com mais leveza, mais equilíbrio. Dia por dia, ano por ano, a gente cai e levanta, limpa a poeira da roupa, limpa o choro do rosto, solta o coração na rua e prende o suspiro no peito. Vai apurando a fé pra tornar-se uma pessoa mais generosa consigo mesma. Toda queda ou salto vale como experiência pra grande oportunidade de estarmos aqui. Tempo é ouro, aprendi, não dá pra desperdiçar assim, de qualquer jeito. 
Coragem no final das contas é envolver-se. Coragem às vezes é desapego.
Coragem é olhar pro espelho no fim do dia e perguntar: - Será que a gente tomou a decisão certa? 
E a resposta vir como um sorriso, da mesma pessoa, essa de frente pro espelho. E lembrar-se do momento que espantou o tédio com um sorriso e desculpou-se com um abraço. Que disse coisas interessantes com o olhar, porque aprendeu que silêncios falam mais alto. Que chegou em um lugar que sempre foi o 'lá' que queria estar, e gostar muito disso. Responder que foi um dia rico, que você tornou-se uma pessoa mais rica, mais rica de amor. Tenha coragem de se olhar no espelho e conseguir agradecer pelo que vê. Todo dia.






sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Da Crença

E apesar dos pesares, ela segue sendo como é: leve. Tentando ser livre das armadilhas que cegam, que enganam, que fazem mal. Porque desde muito cedo ela aprendeu a ser doce. Inteira. Autêntica. Intensa. Ela acredita, embora há tanta gente que prove no dia-a-dia que não dá para confiar. Que é perigoso se entregar. Que é “furada” gostar. Mas apesar dos pesares, ela segue acreditando que há pessoas boas. Verdadeiras. Inteiras. Intensas. Ela acredita. E é essa crença que a move. Que a faz levantar a cada rasteira, a cada tombo. Porque lá no fundo ela sabe: tudo tem uma razão de ser. E se em alguns dias chove, é porque nos demais o sol há de brilhar ainda mais bonito, fazendo da tempestade apenas uma lembrança.

domingo, 20 de novembro de 2011

Do que não se pode fugir

Há de se ter muita coragem para fazer escolhas. 
Deixar de lado uma opção é correr o risco de chegar mais lá na frente acreditando que era a melhor. Porque a gente tem mesmo esse lado de não acreditar no presente. O mais curioso é que, quando a gente volta pro passado, nunca o idealiza como ele realmente era. Mas como a gente queria que ele fosse. 
É preciso aprender: não há vida idealizada. Há vida. E é aí que dá pra fazer o melhor que a gente pode. Pra poder chegar lá na frente e não querer voltar, mas falar que 'pode não ter sido o mais bonito, mas foi o melhor que pude'. É aí que entra a tal da escolha. Escolhas que podem dar errado. Que podem dar certo, ou então que deram errado pra dar certo sem saber. Afinal, a vida não acaba depois da morte. Morrer, acreditem: é só uma passagem. E viver pode ser bem mais difícil do que se imagina. Mas isso também é só uma pequena escolha.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Despertencer


Parto do princípio de que não pertenço.


Ao não pertencer, abro mão do currículo que temos de carregar, diariamente, como provas cruciais de quem somos e aonde podemos chegar. Mas não me iludo, sei que se trata de um ínfimo instante a experimentar desse desapego; que provarei de goles dele durante a vida, e que há um duro trabalho a ser feito para despertencer de vez.


Despertencer de quem seria fosse o avesso de quem sou; e das branduras falseadas que nada mais fazem do que perfumar a dor ferina dos desfechos. Esse desapego pelo certo, calculado; pelos calendários e feriados; pelas portas de entrada que são travadas depois que nos engolem. As janelas voltadas ao horizonte que enxergamos feito quadro, quando deveríamos pertencer à pintura.


Os temporais domesticados.


Muitas vezes nos vestimos com amarras, como fossem redes capazes de nos livrar dos tombos, segurando-nos a centímetros poucos do chão. E então, passamos a viver assim, centímetros de distância nos separando da experiência de sentir das dores aos prazeres; a crueza afastada pelos panos finos que roçam nossa pele, disfarçados de conforto merecido, mas fazendo a vez de muros pessoais, íntimos.


Desaprendi a conjugar promessas, por isso não mais as profiro.


Desaprender é bem menos dolorido do que despertencer, porque ao desaprender destruímos preceitos incapazes de confortarem nossas solidões; desenterramos pesares que se esvanecem ao simples encontro com a nossa conscientização de como são dispensáveis. Desaprender nos permite viajar a sós e aceitar companhia no caminho; olhar o mar de baixo para cima (do fundo para o raso infinito) e encontrar uma nova versão do céu. Um céu de liquidez apaziguadora.


Despertencer atiça os demônios particulares, os convida à mesa; um jantar servido às pressas que alimenta, quase que igualmente, a coragem e o temor por uma possível incapacidade de se desvencilhar dos rótulos, dos desafetos, das limitações. Mas também despe dos véus a capacidade de nos esvaziarmos da condição de aprisionados por nós mesmos, já que nos são oferecidas tais opções com clareza que não se alcança ao lidarmos somente com um lado de quem somos. Ao cultivarmos a possibilidade de não pertencermos, vemos a nós mesmos inteiros, e podemos decidir o caminho a seguir.


Despertencer não significa se ausentar de tudo e de todos, mas se aproximar de si e de outros sem desculpas, preceitos, manobras. Sem antever e definir. É a busca pela intimidade que não intimida, mas engrandece, renova afetos.


Ao despertencer o silêncio me afaga os cabelos. A respiração é tão lenta, como se fizesse hora para não chegar adiantada ao destino; e as cores bocejam uma preguiça esbranquiçada, enquanto cada gesto tem o peso de todas as escolhas que já fiz nessa vida. E no momento mais terno desse despertar, sinto-me escorrendo pelas paredes, batucando nos telhados, abraçando prédios, pessoas, precipícios, estradas, campos; derrubando cercas, rótulos, prisões.

Feito um temporal que é impossível se domesticar.

domingo, 13 de novembro de 2011

Clariceando...

Clarice Lispector por Caio Fernando Abreu



"Em 1971, li um dia no jornal que ela estava em Porto Alegre pra dar uma entrevista na TV e que depois ia autografar seus livros. Peguei todos os livros que tinha da Clarice e corri para o estúdio. Deparei, então, com uma mulher linda, enigmática, silenciosa. Aquela gente toda em torno dela e ela absolutamente quieta, sentada em uma cadeira com aquelas unhas vermelhas. Não tive coragem de me aproximar e a fiquei olhando a distância. De repente, ela me chamou e, com aquela voz cheia de erres presos, me disse: ‘Você senta comigo. Você se parece com dom Quixote e deve ficar ao meu lado, porque eu estou muito assustada”... Pouco tempo depois, viajei ao Rio de Janeiro para o lançamento de Limite branco. Assim que cheguei ao hotel, telefonei para ela. ‘Eu quero ser a madrinha dessa noite’, ela me disse. Apareceu na livraria toda de preto e ficou a noite toda sentada ao meu lado, em silêncio absoluto. De vez em quando, ela se voltava para mim e, com aquela voz rouca, sussurrava: ‘Você é o Quixote! Você é o Quixote!'. Nessa época Clarice estava escrevendo Água viva. Nos dias seguintes, ela me telefonou várias vezes me convidando para visitá-la em seu apartamento. Quando eu chegava na portaria, o porteiro dizia: ‘Dona Clarice não está’. Ela estava em casa, mas deixava o porteiro com essa ordem de barrar as visitas e se esquecia de mim... Clarice não gostava muito de viajar. Mas um dia, numa visita a Porto Alegre para um encontro literário, ela me telefonou. ‘Quixote, estou aqui’,  me disse. ‘Venha me levar a algum lugar diferente, porque eu não gosto de escritores’. Fomos, então, caminhar pela Rua da Praia. Em um bar, pedimos um café, que foi servido no copo. ‘Numa xícara, por favor’, ela pediu. O rapaz, paciente, fez a troca. Ela tomou o café em absoluto silêncio. Pensei que estivesse aborrecida. De repente, ela me perguntou: ‘Como é mesmo o nome dessa cidade?’. Clarice já estava em Porto Alegre há três dias! Mas isso não importava, ela habitava mesmo o planeta Lispector... Chegou uma hora que em que eu me proibi de ler Clarice Lispector. Seus livros me provocavam a sensação de que tudo já foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito”.

Fonte: O Estado de São Paulo, 09/12/1995 




Agora Caio fala sobre Clarice em carta enviada à  escritora Hilda Hilst



9/12/1970

Hildinha,  
A  carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu
Caio."

Fonte: Livro "Cartas" de Caio Fernando Abreu.






Clarice é presença dentro e fora da pele. Lê-la é soltar a alma ao ar livre. É aprender a respirar no fundo do mar, ou no espaço sideral. No início, morre-se de asfixia.  Mas, logo depois, a atmosfera de Clarice invade a antiga forma de viver, e então se necessita respirá-la para estar vivo.
Clarice não se define, Clarice se intui. Procurem- na nas reticências, onde pode revelar-se em uma timidez escancarada ao mesmo tempo que mostra-se audaciosa e discreta. É lá onde Clarice reside, contraditória e indefinível: nas entrelinhas.


A seguir, última entrevista dada por Clarice Lispector ao jornalista Junior Lerner para o programa Panorama em 1977:





quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tradução

desculpe mas não é carta de amor
não é um lamento
nem desvario
não é poema erótico
arcaico
híbrido
nem é bilhete pregado na geladeira
post-it fixado no espelho
feito lembrete desajeitado
tampouco é um livro
aberto sobre a cama
com trecho marcado
gritando leia-me

não é recado que menino grita
desculpe
mas também não é diário
caderneta de despesas
de mercado
não é papel perfumado
sem letras expostas
mas repleto de significado
nem mesmo pensamento
mancomunado
com a liturgia sobre a paixão
ou verbo alucinado
ecoando no delírio do ébrio

sinto muito
mas não são respostas às perguntas
no caderno de enquete
não tem a ver com formulário
burocracia
nem mesmo com a burocracia do gostar
nem chega perto
de ser jogo
porque perde o fôlego
antes mesmo de se esbaldar
na mesmice
não é premonição
não é sintoma

não é bombom sobre o criado-mudo
deixado pelo outro
que parte assim que o dia aparece
não tenta adocicar o que fica
quem fica
ou romantizar a falta
ela tão habituada a excitar
a vaidade
de quem a cultiva
não é baralho cigano
nem conselho
não é boleto bancário
ou receita médica

portanto
acomode-se
deite o olhar sobre o que é
sem ser de fato
deixe de procurar sentido
onde sempre quis
que a ilusão reinasse
deixe-se levar ao quarto
quinto
sexto
a todos os andares e andamentos
exorcizando o inquietante desejo
pela tradução.

sábado, 29 de outubro de 2011

Olhar de dentro


Essa gana por ser necessário. Olhar nos olhos do outro e ver a si mesmo: âncora, abraço condimentado de afeto. Querer a si reinventado na história que não sua. Surrupiar sorrisos que não lhe cabem. Viver o pulso do outro. O ritmo alheio. E neste ínterim, falsificar buquês de ousadias, através de vivências afanadas de livros de filosofia. Incandescer a gélida fração de mágoa que lhe custou anos de solidão copiosa e saudade do desconhecido. E no fundo: enviuvar dos relâmpagos. Engravidar das ideias. Suicidar mesquinharias. Abortar rótulos. Dar longos beijos de língua em amores platônicos, reinventar-se, após se dar conta que não se é o outro, mas com ele aprendeu a reconhecer a si mesmo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

"O peso que a gente leva"




Olho ao meu redor e descubro que as coisas que quero levar não podem ser levadas. Excedem aos tamanhos permitidos. Já imaginou chegar ao aeroporto carregando o colchão para ser despachado?

As perguntas são muitas: E e se eu tiver vontade de ouvir aquela música? E o filme que costumo ver de vez em quando, como se fosse a primeira vez?

Desisto. Jogo o que posso no espaço delimitado para minha partida e vou. Vez em quando me recordo de alguma coisa esquecida, ou então, inevitavelmente concluo que mais da metade do que levei não me serviu pra nada.

É nessa hora que descubro que partir é experiência inevitável de sofrer ausências. E nisso mora o encanto da viagem. Viajar é descobrir o mundo que não temos. É o tempo de sofrer a ausência que nos ajuda a mensurar o valor do mundo que nos pertence.

E então descobrimos o motivo que levou o poeta cantar: “Bom é partir. Bom mesmo é poder voltar!” Ele tinha razão. A partida nos abre os olhos para o que deixamos. A distância nos permite mensurar os espaços deixados. Por isso, partidas e chegadas são instrumentos que nos indicam quem somos, o que amamos e o que é essencial para que a gente continue sendo. Ao ver o mundo que não é meu, eu me reencontro com desejo de amar ainda mais o meu território. É conseqüência natural que faz o coração querer voltar ao ponto inicial, ao lugar onde tudo começou.

É como se a voz identificasse a raiz do grito, o elemento primeiro.

Vida e viagens seguem as mesmas regras. Os excessos nos pesam e nos retiram a vontade de viver. Por isso é tão necessário partir. Sair na direção das realidades que nos ausentam. Lugares e pessoas que não pertencem ao contexto de nossas lamúrias. 

Ver o sofrimento de perto, tocar na ferida que não dói na nossa carne, mas que de alguma maneira pode nos humanizar.

Andar na direção do outro é também fazer uma viagem. Mas não leve muita coisa. Não tenha medo das ausências que sentirá. Ao adentrar o território alheio, quem sabe assim os seus olhos se abram para enxergar de um jeito novo o território que é seu. Não leve os seus pesos. Eles não lhe permitirão encontrar o outro. Viaje leve, leve, bem leve. Mas se leve.

Padre Fábio de Melo

domingo, 9 de outubro de 2011

Carência


Careço da palavra sussurrada, das manhãs cinzas conduzidas à base de filmes e pipoca, da mão estendida à espera do cumprimento, dos discos que um dia foram imprescindíveis, não apenas colecionáveis. E chapéus. Sou pessoa apaixonada por chapéus e que raramente os usa. Careço de ser capaz de usar chapéus, de dançar nas ruas com meus chapéus coloridos. De ser a moça doida dos chapéus engraçados.

Careço da presença que não me culpe pelas culpas que já reconheço em mim. E que ela saiba fazer café, porque ainda não sei viver sem. Um dia aprendo... quem sabe. E de cortinas se abrindo no teatro, das telas de cinema, e de frases de efeito que só fazem efeito na gente quando ditas com o gosto bom do sentimento verdadeiro.

Acontece de eu carecer de mim mesma, porque às vezes me desabito, saio de mim e nem me olho de fora, apenas me afasto e o mundo segue sem me perceber arredia, à beira da vida, simulando frieza que não sei sentir.

E do que mais careço é da gentileza. Soubéssemos todos do poder de transformação que ela outorga, talvez fosse possível vivermos o estar em paz com a vida que levamos.

Careço dessa leveza... e da canção.


domingo, 2 de outubro de 2011





Muitas ruas, muita gente. Muito rápido.
Metrô. Saúde, Tucuruvi, Jabaquara.
O delicioso mundo das padarias e dos shopping centers.
Vila Madalena e Pompéia como amante e esposa. Uma serve pra sonhar, a outra é pra viver a vida. Ficam as duas eternamente se provocando e a gente achando graça, porque não se pode amar uma sem a outra.
A fria e bela menina Av. Paulista. Arrebatando olhares e trincando ossos. Linda de espantar, abrindo-se toda, iluminada pelo céu de inverno. Louca de pedra, literalmente.
Augusta. Cinema, putas desbotadas-coloridas, música e seres exóticos. Longa e crua. Marco da profanação.
O Maravilhoso Mercado Mágico Central. Frutas paradisíacas, bancas pictóricas, monumentais sanduíches de mortadela. Dá vontade de lamber o chão.
Estação da Luz. Transcendental. Ecoando abraços, lágrimas e sorrisos. O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro e da despedida de gerações. Os Brasis e os mundos todos lá. O coração aperta e nem se dá conta que assim transborda mais.
Tudo enorme para nós formiguinhas.
Cracolândia. De costas pra Luz, o sobejo de coisas que imagino um dia terem sido gente. Ao meio dia, cardápio de putas na casa de tolerância: loira triste; nordestina arrependida; gorda sentada. Aviso: Puta alegre tem, mas acabou.
Que nem a felicidade aqui.
Desço a Consolação só pra me perder enquanto olho os aviões.
Me acho entre guitarras e violões na Teodoro Sampaio.
Sobe e desce na Santa Efigênia atrás d'um megafone.
Não quero nenhuma roupa da José Paulino. Não quero nenhuma quinquilharia da 25 de Março.
Mas a Liberdade eu quis! Quis, quis, quis. Comi, cheirei, comprei a Liberdade pra mim, entre nipônicos delírios consumistas e orgasmos gastronômicos. Explosão sensorial. E viva a imigração japonesa. Afasta a morte essa tal de Liberdade.
Descer a Serra rumo ao litoral é nutrir os olhos e desentupir os ouvidos. Mas o mar é feio, e eu sou cosmopolita. Deu saudade da cidade cinza, e das luzes embaçadas no frio. Talvez porque nela as cores conheçam seu verdadeiro valor.
Quem vive em meio ao caos de São Paulo, talvez carregue dentro de si esse mesmo caos.
Mas valeu a pena sentir o coração fechar e novamente se encher de sol ao atravessar os túneis da Estrada de Santos.
Ao regressar havia um homem de paletó dando voltas num poste como Fred Asteire, e tudo fez sentido. Talvez porque era domingo. Talvez porque era Sampa.
Pelas avenidas, paredões de vidraças em prédios psicodélicos. Prédios estratosféricos. Históricos. Coloridos. Decadentes. Babilônicos.
Babel. Todo mundo é daqui. Aqui ninguém tem rosto, e como é grande e esmagadora a sensação de sermos um só.
Aqui o absurdo toma forma e fica até bonito, muitas vezes.
Aqui a deselegância é discreta, e os narcisos não têm espelho.
Porque é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso.
Welcome to Concrete Jungle.
The living is hardest, mas é incrível aqui.
Se jogue no grosso fluxo que alimenta e doe toda vida quanto for possível a esse monstro feito de pedra, sangue, tempo e luz.
E mesmo que não entenda nada, as coisas que acontecerão no seu coração traduzirão a dura poesia concreta dessa cidade.
E é depressa que você aprende a chamá-la de realidade.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Imagem: National Geographic


Em momentos mais otimistas, poderiam se considerar dotados de alguma sorte. O universo era infinito mas estavam ali, os dois na mesma galáxia. Embora, aos olhos dos outros, ela fosse maior, os dois sabiam que, grande mesmo era ele. Um gigante em diversos aspectos que fizera dela sua mais fiel admiradora. Uma entre tantas, é verdade. Mas a mais fiel. Uma fidelidade que a fez totalmente dependente do brilho e do calor dele. E ela nem se importava. Para ela era suficiente saber que, ao seu modo, ele também a admirava, embora, ou quem sabe por isso mesmo, ela fosse de fases. Tinha algo de louca, de poesia sem rima. Era inspiradora. Quase uma musa, não fosse pela falta de luz própria. Pena estivessem condenados à tragédia de causar inveja a Romeu e Julieta. Estes, ao menos, tiveram a chance de morrer juntos. Na história deles, "juntos" parecia não existir. Estavam destinados a vagar eternamente, sem nunca se encontrarem. Ou quase nunca. De tempos em tempos - o suficiente para que novas crateras se abrissem nela - eles se encontravam por segundos. Para eles, milagre. Para todo o mundo, eclipse total.

Depois, cada um seguia sua órbita. Ele mal pensava no assunto. Estava ocupado demais sendo o centro do universo. Ela minguava. Se sentia nova. Crescia um pouco com aquilo. E, cheia de amor, torcia para que no próximo encontro houvesse uma pane no sistema que paralisasse os dois no alinhamento perfeito.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Muito pra mim é tão pouco e pouco eu não quero mais..."


É que já não me interesso mais
pelo que é feito sem música nem sinceridade.
Não quero mais as coisas brandas, de cadência suave.
Atrai-me o frenético, o inconstante certo.
Tanta loucura só pode dar em solidão.
Não me acostumo mais a viver sem arder
E ainda rimando, repito: na confusão, encontro solução.
Toda sem eixo escrevo meus caminhos tortos.
Não me amedronta o erro, mas a inércia.
E tudo de mim, a esmo, não passa de um relato solto,
De um jardim plantado sob a sombra do tempo,
Regado a lágrimas, cujas flores sem cores
Pinto de sonhos, sentimentos, e tudo que invento.
Para colher o que possa chamar de VIDA






quarta-feira, 10 de agosto de 2011



Sentir a falta me consome muito.
É até cômico, penso,
 a ausência de alguém preencher em você um vazio cheio de saudades.





Sentir falta, ao contrário do que dizem por aí, é diferente, muito diferente, de sentir saudades. Ah, sentir saudades. Sentir saudades é grandioso. Dor enorme que rasga por dentro dias seguidos, horas intermináveis, tempo infinito.

Sentir falta não. Sentir falta é pontual. É dor fina, dor de beliscão com unha, dor de anestesia de dentista. Sentir falta é mais específico. Sente-se falta do carinho antes de dormir, da implicância com o controle remoto, sente-se falta do jeito boboca que ele tinha de andar, do modo de sorrir, de falar. Sentir falta é mais egoísta, quase que material. Sentir falta do café dele, da bagunça dele, dos discos dele, do chinelo dele, sempre ali, jogado displicentemente na beira da cama. Sentir falta da camiseta velha dele que você podia usar. Ai, que falta faz essa camiseta! Sentir falta é pequeno, mas não menos doloroso. 

Ou não dói uma unha encravada? Ou não dói um "bife" que a manicure tira? Ah, dói e como. Talvez até mais que a dor da saudade.
A dor da saudade é grande. É infecção generalizada. É uma gripe daquelas, uma dengue hemorrágica, uma pneumonia. A saudade não te deixa respirar. Não te permite trabalhar, te faz faltar o ar. É dor das grandes que te derruba de tal forma que, de repente, por mais que esteja sol, faz um frio de rachar na sua casa e você pode jurar que nunca sairá de novo de dentro do seu edredon, porque suas forças acabaram ali, naquele instante, e não há mais nenhum fiapo de vontade sequer para amarar um tênis. Isso é saudade. 

Saudade não é sempre de uma coisa específica. Pode até ser, mas normalmente saudade é plural. Saudades é dos dois. Saudades é de você mesma, com os olhos brilhando. Saudades do frio na barriga, saudades do começo, saudades da praia, saudades daquela festa ridícula, saudades dos foras que vocês davam juntos, dos preparativos para aquela viagem, saudades daquela viagem e da alegria de estar lá. Da expectativa de ir pra lá, da ansiedade, da enorme felicidade e graça, que só vocês conheceram. 
Saudades de coisas efêmeras, saudades de fumaça que não se pega, não se toca e, talvez, nem tenha acontecido de fato. 

Por isso, saudade pode ser inventada - falta não. Saudade é contínua, falta é curta. Saudade é pó, falta é pedra. Saudade é soco no estômago, falta é puxão de cabelo. 
Falta é daquilo que não está ali, e que deveria estar. É a dor da cozinha intocada, da luz apagada, do controle remoto só seu. A falta está na rotina, nas pequenas coisas concretas do dia a dia. Ela é pontual, mas pode aparecer todos os dias. E todos os dias você sentirá a dor fina da picada de uma abelha quando notar, por exemplo, que o banheiro está arrumadíssimo e a pia ficou grande para os seus poucos perfumes. Lá está a dor da falta vindo de repente, tal qual um ladrão que te furta a bolsa. Ela vem e, como uma unha encravada, não te impede de trabalhar, de viver, até de se divertir. Mas avisa que está lá, latejando dentro do sapato bonito.

Você pode até ter se curado das saudades, mas, talvez, um dia quando o chuveiro queimar, você vai sentir uma falta enorme dele, e de todas as soluções simples que ele tinha para problemas tão complexos como esse.

Talvez uma se cure antes da outra, talvez nenhuma das duas tenha cura. Ambas, no entanto, te trazem a sensação de angústia. Ambas acontecem apenas quando o objeto da saudade ou da falta, parece estar ali, na beirada da sua vida. Ambas te fazem esticar o braço com força, com toda a sua força, o máximo que pode, para alcançar aquilo que já não está mais, que é sombra, virou lembrança, e é por isso que dói.

Talvez essas duas dores só sumam de fato quando ele sair da beirada. Quando o desenho do rosto dele não for mais tão nítido na sua memória, quando o som da voz dele não for mais tão claro em teus ouvidos. A saudade e a falta, de formas diferentes, com dores distintas, clamam por aquilo que mais se teme. A única solução possível é a mais temida, e serve para as duas: o esquecimento.

domingo, 7 de agosto de 2011

Um grão de nós


Há de existir algum lugar para nós.
N'algum ponto perdido, em alguma amplidão sem rumo nem caminho conhecido, haverá o nosso lugar.
Nele florescerá o avesso de toda distância que nos massacrou. Serão suprimidos e varridos para quilômetros de nós todo abismo e toda perda. Não haverá mais dores nem desenlaces, nem saudades, nem solidões veladas. Apenas a luz viva dos nossos olhos a se fitarem, marcados de sonhos que renascerão intactos, como o sol que após a tempestade emprenha a terra de vida e esperança.
E seremos eu e tu imensamente um só. Uma semente de felicidade adornada pelo brilho das estrelas, abraçada pelo infinito universo. E seremos nós um grão genuíno e imperturbável de paz imperando humilde no tão aterrorizante caos, ou no mais remoto nada.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Tudo o que não fazes - e fazes;
que não dizes - e dizes;
que não ligas - e ligas;
Tudo que escreves, que replicas;
Tudo que repetes, no fundo não passa 
de reprodução famigerada
do que queres que em ti
se esgote.

domingo, 5 de junho de 2011

Labirinto de Espelhos


Todo mundo vive procurando alguém que caiba no seu sonho. A personificação ideal do ser amado.
As pessoas buscam exaustivamente aquilo que existe em suas mentes e corações, sem se darem conta da incoerência desta empreitada.
O ser idealizado se auto-define pelo nome. E é isso mesmo, ele não existe no mundo em que vivemos. Simplesmente porque não é possível que isso ocorra. Não quero parecer presunçosa, mas geralmente a pessoa residente em nossos sonhos é algo como nós mesmos numa versão master-power-plus. Ou seja, pura egotrip da nossa parte. E nada razoável, vamos combinar.
Para amar, antes de tudo temos de estar dispostos a nos chocar. A deixar que o outro nos surpreenda, absorvendo isso de maneira positiva, aprendendo com a pessoa, se possível. Porque o amor de verdade é isso, é a gente se colocar em confronto consigo mesmo e achar o maior barato. Amar não é escolher o espelho de corpo inteiro perfeito pro closet, é aceitar que a diferença do outro sempre vai nos acrescentar mais do que nossa vaidade poderia supor.
Claro que nem sempre vai ser bom. Mas ainda assim, é válido. Sem impasses e discussões não haveria termômetros para o amor. Seríamos vacas holandesas pastando serenas, longe dessa aventura que faz a vida num corpo humano valer tanto a pena. O defeito que você enxerga na pessoa pode ser o que vai te indicar o quanto ela é essencial em sua vida. Nada de estranho, nós é que somos seres incongruentes por natureza e precisamos desses artifícios para nos sentirmos vivos.
Por isso é tão importante se deixar um pouquinho de lado, no momento da busca pelo seu esquenta-pés das noites frias. Até porque, vamos falar francamente, a gente nunca se apaixona pelo que já previa. Materializado o ser sublime que povoa nossas cabecinhas birutas, e correríamos léguas de alguém tão óbvio.
A gente se apaixona é pelo que não sabe dizer. Quanto menos soubermos exprimir, mais envolvido estaremos. O desconhecido coloca nossa utopia no chinelo.
É aquele olhar que você não decifra, a sensação nova que nunca vai poder definir, os trejeitos únicos de alguém que, uma vez tocado por seus olhos, jamais se perderá na multidão. São a suprema fraqueza e a ignorância nos fazendo sentir enormes. É a felicidade concentrada num frasco de procedência duvidosa, que a gente toma, se vicia e não quer largar nunca mais.
Uma parceria real, legítima e satisfatória não poderia ter graça se fosse diferente. As pessoas são mesmo difíceis, mesquinhas, orgulhosas e mentirosas, mas são poucas as inaptas a dar e receber tanto amor quanto for possível.
O certo é que, num momento qualquer, uns olhos imprevistos irão brilhar para nós e o(a) dono(a) deles possuirá uma voz que atingirá mais fundo que de costume. Aí então receberemos um sinal para suspender a busca. E saberemos que o sabor da descoberta é muito melhor que o da certeza.
Quando, não sei. Mas o local onde isto ocorrerá eu posso confiar a você. Será na saída do labirinto de espelhos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Beta, Beta, Bethânia!


"Então ela chega e diz: “Dá
                                                 licença, rock and roll, 
                                                 que a tia vai cantar o amor."



Os muitos darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida onde estamos metidos até o pescoço, às vezes não é brega, careta, melodramática? A Vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mais Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowski ou Bergman?

Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo Bichos Escrotos). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo uma coisa diferente. Porque o que vai sendo vivido e sentido por cada um é tão particular que, mesmo lugar comum ou já cantado em prosa e verso, é para sempre também único.Infinitiva e indivisivelmente subjetivo.

Nossa, como estou me dispersando. O que quero dizer é muito simples – adoro Maria Bethânia. Por um tempo, aposentei Eurythmics, The Cure, Talking Heads, Legião Urbana, Sting, Paul Simon – só consigo Bethânia.

Ando tomado por emoções-Bethânia. Essas, que estão morrendo à míngua, poque não é moderno ter emoções. Não é in sentir amor, envolver-se. Ficou out dizer coisas como “quero ficar com você/ e é tão fundo que eu posso dizer/ que o fim do mundo não vai chegar mais” ou “parece bolero/ te quero, te quero/ dizer que não quero/ teus beijos nunca mais” ou “quando os caminhos se separam/ não tem razão que dê mais jeito” ou “é tão difícil ficar sem você/ o teu amor é gostoso demais”. É burro cantar coisas que eu, tu, ele, nós sentimos? É brega ter desejos e carências e dores e suspiros assim, de gente?

Sentir não é brega. Ao contrário: não existe nada mais chique. Emocione-se e seja o rei de sua insensatez. Seja nobre, seja divino no desconcerto das emoções. Maria Bethânia é muito chique, e quase ninguém está vendo isso. Em Dezembros, sem querer fazer nenhuma revolução, ela chega e diz: “Dá licença, rock and roll, que a titia vai cantar o amor”. E eu peço: Crianças, cessem as guitarras, os teclados, os sintetizadores – um minuto só – e prestem atenção na voz quente dessa mulher linda do jeito inverso da beleza, cantando (que ousadia!) o amor.

Sei: a Aids está solta, e o que era possibilidade de amor agora é possibilidade de morte. Nem por isso é possível parar de amar. Você consegue? Eu, não. E não tenho medo. Sem platonismos, nem zen-budismos: quero que pinte o amor-Bethânia, dançar de rosto colado, pegar na mão à meia-luz, desenhar com a ponta dos dedos cada um dos teus traços, ficar de olho molhado só de te ver, de repente e, se for preciso, também virar a mesa, dar tapa na cara, escândalo na esquina, encher a cara de gim, te expulsar de casa e te pedir pra voltar.

Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém – as únicas canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sangrada, do avesso – que importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta.

            

Caio Fernando Abreu      (Caderno 2 – O ESP – 1987)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

De olhos, de alma.

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“Existe essa alegria, e eu não posso evitá-la, pois são poucos os gestos permitidos,
se você reparar; não podemos desperdiçar um que seja.
Então, muitas vezes, eu preciso de um fone de ouvido para ouvir
a minha alegria bem alto sem incomodar o vizinho. 
É algo inédito, mas agora existe isso na minha vida.
Então, eu me sento ali no cantinho e sou feliz,
escancaradamente sem motivo!”

(Rita Apoena)




Com seus olhinhos miúdos ela vê muito. Às vezes o todo. Outras vezes, além. Por isso, nem sempre enxerga o que gostaria. Mas teimosa como ela é, não desanima. Coloca pitadas de fé e amor em tudo o que faz. Por onde passa planta flores de esperança. E sabe lá no fundo que, pode demorar, mas um dia elas irão florir. E mesmo em dias de chuva, quando tudo se mostra cinza, busca lá no fundo um feixe de luz. Porque ela sabe que, apesar de sua aparente fragilidade, a vida lhe fez forte. Pronta para enfrentar espinhos, experimentar sabores amargos, decepções e frustrações. Tudo sem perder a fé. Sem apagar o sorriso dos lábios. Sem deixar para trás o entusiasmo em dias melhores. Novas emoções. Porque sua alma vibra. Ela clama pelo essencial todos os dias, pelo o que é de verdade, pelo o que desperta o que há de melhor em nós. Com seus olhinhos miúdos ela enxerga cada vez mais a vida. A sua vida. O seu momento. E percebe lá no fundo de sua alma que só tem a agradecer: pelo ontem, pelo hoje e com certeza pelo que ainda virá.







sábado, 26 de março de 2011

Eu andava tentando me preencher daquilo que só trazia mais vazio.
Abastecendo-me do que desde o princípio eu sabia não fazer diferença nenhuma.
Tudo porque me deixei convencer que era melhor um pássaro na mão do que dois voando, e por algum tempo eu fui me desvencilhando da carapuça de sonhadora.
Deixando para trás o par de tênis surrado da cinderela, as meias coloridas da Alice e as tranças cheias de pontas duplas da Rapunzel. E pra quê?
Pra rasgar uma identidade, adequar-me a mulher do novo milênio.
Eu hoje estou me lixando para os avais que não recebi.
Lixando-me para todas essas malditas convenções que me mandam ser mais isso, menos aquilo, ter mais amor próprio.
Aqui é tanto amor que tem pra próprio, pra próximo, inimigo, alheio e pra um batalhão inteiro.
Desculpem- me os que não conseguem ver beleza na guerra, mas eu prefiro tentar voar ao lado dos pássaros que estão no ar, que me desafiam.
Antes mesmo de começar a deletar tais mãos e bocas, eu vou marcando o terreno do que nutre.
Destrói também mas eu já disse que sinto o prazer na luta. Eu gosto dessas marcas e cicatrizes que provam que eu vivi.
E ninguém um dia poderá decifrar a minha próxima atitude. Trabalho em favor do meu coração. Desse inefável coração que incessantemente implora calor. Que pediu para que eu jamais me conformasse com simples trocas de favores, com migalhas, simpatia e comodidade.
Ele precisa de paixão para bombear todo o resto e eu tô fazendo o que for preciso pelo frio na barriga.
Puxa a mala lá de cima.
Outra vez.

domingo, 13 de março de 2011

Excessos

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E de repente eu me cansei de ter nascido indo embora. Talvez eu esteja começando a ficar velha, e sinta a vida ficando para trás. Houve um tempo em que eu seguia despreocupadamente, e cada novo caminho era uma via que tinha de ser explorada com sede violenta. Hoje, eu procuro as migalhas devoradas pelos pássaros. Eles que voam livres e levianamente despistam-me das trilhas que percorri. As ruas de São Paulo, eu sigo por elas pensando talvez encontrar um caminho de volta. Todas as ruas têm um nome. Um só nome. Eu as percorro e não encontro o portal, o ponto de encontro das paralelas. O infinito é distante e eu prefiro o aqui e agora. Por onde volto? Onde se esconde a chave de um tempo em que o tão pouco era tanto? Mas eu sigo, eu sigo. Eu pego esse vôo sem volta e desço na cidade dos excessos. Excessivamente suja, povoada, barulhenta. Excessivamente nula. E eu querendo o pouco para me preencher.
.

quinta-feira, 3 de março de 2011

[...]



Olhando a foto, foi quando eu descobri que tua ausência ainda doía, e o tempo que passou não me serviu como remédio. A minha paciência foi inútil e todo desapego incompetente. Eu me desvencilhei de livros, cartas e bilhetes e me desmemoriei por algum tempo. Quis tanto ter você, depois silêncio. Mas nessa tarde estranha em que ensaio versos, só vem tua falta à tona, e eu desamarro um pranto que sei tão antigo. Perdoe as palavras com cara de choro, ainda sinto freios no coração. Ainda há reticências.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ELE

Ele pode estar olhando as suas fotos neste exato momento. Porque não? Passou-se muito tempo. Detalhes se perderam. Que importa? Pode ser que ele faça todas as coisas que você faz escondida, sem deixar rastro nem pistas. Talvez ele passe a mão na barba mal feita e sinta saudade do quanto você gostava disso. Ou percorra trajetos que eram seus, na tentativa de não deixar que você se disperse das lembranças. As boas . Por escolha ou fatalidade, pouco importa, ele pode pensar em você todos os dias e ainda assim preferir o silêncio. Ele pode reler seus escritos, procurar o seu cheiro em outros cheiros. Ele pode ouvir as suas músicas, procurar a sua voz em outras vozes. Quem nos faz falta acerta o coração como um vento súbito que entra pela janela aberta. Não há escape. Talvez ele perceba que você faz falta e diferença de alguma forma, numa noite fria. Você não sabe. Ele pode ser o cara com quem passará aquele tão sonhado verão em Paris. 
Talvez ele volte. Ou não.
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mas se voltar, que seja por inteiro e pra ficar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Black Swan

O que dizer quando um filme te adentra as entranhas de maneira tão avassaladora que você nem consegue enxergar algum defeito nele? Talvez seja porque ele não tenha mesmo defeitos, ou talvez estes sejam tão pequenos que nem vale a pena comentá-los.
Vindo de uma sequência de trabalhos excelentes como “”, “Requiem Para Um Sonho” e “O Lutador”, Darren Aronofsky mostra que ainda tem muitas cartas na manga para surpreender.
Seu tema recorrente, a obsessão, é retomado em "Cisne Negro" da maneira mais intensa possível, levando à loucura personagens e espectadores. Não há como não se envolver com a interpretação de Natalie Portman  e enlouquecer gradativamente com ela, chegando ao ponto quase insuportável do final.
Natalie interpreta Nina, uma bailarina veterana, que vê na escalação para a nova roupagem que o diretor Thomas Leroy (Vincent Cassel) pretende dar à famosa peça de ballet "O Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky, a chance de ter o seu talento finalmente reconhecido.
Thomas vê em Nina a perfeita interpretação do cisne branco, que exige leveza e graciosidade mas quer uma mesma atriz para realizar a sequência do cisne negro que requer sedução e agressividade, mas Nina não parece ainda estar preparada para isso. Obstinada a ficar com o papel, principalmente depois da chegada de uma bailarina mais nova, a veterana começa a despertar o seu lado mais sombrio, mas não imagina o quanto isso pode sair do seu controle.




O elenco faz o espetáculo "pegar fogo". Portman entrega sua melhor atuação, indo da suavidade explícita pela voz fina do início do filme à impostação de voz e agressividade adquiridas gradativamente no decorrer da história. Lily (Mila Kunis) é o pecado em pessoa, divide com a protagonista uma das cenas mais fortes e picantes dos últimos tempos .

Ainda com um pé no cinema independente (felizmente), Aronofsky realiza inúmeros takes de câmera na mão, faz cenas circulares sem precisar de travelling e abusa de planos, detalhes que potencializam a dor e a obstinação da bailarina. Usa de efeitos visuais de muito gosto, mas apenas quando é estritamente necessário para a poesia que pretendia construir, e ele conseguiu. É um deleite assistir a cada cena, cada recurso utilizado por este que é um dos maiores diretores do nosso tempo.
A sensação ao assistir um filme como este é a de um maestro, regendo (por que não?) O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, exaltando-se mais e mais, perdendo a linha, entrando em êxtase e desmaiando ao final da bem sucedida regência que acabara de fazer.
É a este extremo que esse filme pode levar o público. Uma obra-prima antiga, revista e transformada numa obra-prima contemporânea.
“Cisne Negro” é o Dom Casmurro de Aronofsky. Um filme para ser explorado inúmeras vezes e sempre ao gosto do freguês. A clareza que não vem ao final é o que menos importa. A arte não precisa de respostas claras. O que mais envolve é justamente  esse misto de realidade e fantasia. A dúvida que ele provoca em certas cenas, se elas estão mesmo acontecendo ou se são apenas alucinações da protagonista. Uma verdadeira crítica às variadas formas de imposições, sejam por parte dos pais ou da sociedade ou até de nós mesmos, a busca desenfreada pela perfeição e suas desastrosas consequências. A angústia , o desespero de não poder ser você mesmo, de não ter a liberdade de pensar e agir por conta própria. Com certeza vai além de uma releitura de um clássico do ballet. Simplesmente fantástico e surpreendente. Quem tiver a oportunidade de assistir, vale muito a pena.