quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ELE

Ele pode estar olhando as suas fotos neste exato momento. Porque não? Passou-se muito tempo. Detalhes se perderam. Que importa? Pode ser que ele faça todas as coisas que você faz escondida, sem deixar rastro nem pistas. Talvez ele passe a mão na barba mal feita e sinta saudade do quanto você gostava disso. Ou percorra trajetos que eram seus, na tentativa de não deixar que você se disperse das lembranças. As boas . Por escolha ou fatalidade, pouco importa, ele pode pensar em você todos os dias e ainda assim preferir o silêncio. Ele pode reler seus escritos, procurar o seu cheiro em outros cheiros. Ele pode ouvir as suas músicas, procurar a sua voz em outras vozes. Quem nos faz falta acerta o coração como um vento súbito que entra pela janela aberta. Não há escape. Talvez ele perceba que você faz falta e diferença de alguma forma, numa noite fria. Você não sabe. Ele pode ser o cara com quem passará aquele tão sonhado verão em Paris. 
Talvez ele volte. Ou não.
.
.
.







mas se voltar, que seja por inteiro e pra ficar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Black Swan

O que dizer quando um filme te adentra as entranhas de maneira tão avassaladora que você nem consegue enxergar algum defeito nele? Talvez seja porque ele não tenha mesmo defeitos, ou talvez estes sejam tão pequenos que nem vale a pena comentá-los.
Vindo de uma sequência de trabalhos excelentes como “”, “Requiem Para Um Sonho” e “O Lutador”, Darren Aronofsky mostra que ainda tem muitas cartas na manga para surpreender.
Seu tema recorrente, a obsessão, é retomado em "Cisne Negro" da maneira mais intensa possível, levando à loucura personagens e espectadores. Não há como não se envolver com a interpretação de Natalie Portman  e enlouquecer gradativamente com ela, chegando ao ponto quase insuportável do final.
Natalie interpreta Nina, uma bailarina veterana, que vê na escalação para a nova roupagem que o diretor Thomas Leroy (Vincent Cassel) pretende dar à famosa peça de ballet "O Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky, a chance de ter o seu talento finalmente reconhecido.
Thomas vê em Nina a perfeita interpretação do cisne branco, que exige leveza e graciosidade mas quer uma mesma atriz para realizar a sequência do cisne negro que requer sedução e agressividade, mas Nina não parece ainda estar preparada para isso. Obstinada a ficar com o papel, principalmente depois da chegada de uma bailarina mais nova, a veterana começa a despertar o seu lado mais sombrio, mas não imagina o quanto isso pode sair do seu controle.




O elenco faz o espetáculo "pegar fogo". Portman entrega sua melhor atuação, indo da suavidade explícita pela voz fina do início do filme à impostação de voz e agressividade adquiridas gradativamente no decorrer da história. Lily (Mila Kunis) é o pecado em pessoa, divide com a protagonista uma das cenas mais fortes e picantes dos últimos tempos .

Ainda com um pé no cinema independente (felizmente), Aronofsky realiza inúmeros takes de câmera na mão, faz cenas circulares sem precisar de travelling e abusa de planos, detalhes que potencializam a dor e a obstinação da bailarina. Usa de efeitos visuais de muito gosto, mas apenas quando é estritamente necessário para a poesia que pretendia construir, e ele conseguiu. É um deleite assistir a cada cena, cada recurso utilizado por este que é um dos maiores diretores do nosso tempo.
A sensação ao assistir um filme como este é a de um maestro, regendo (por que não?) O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, exaltando-se mais e mais, perdendo a linha, entrando em êxtase e desmaiando ao final da bem sucedida regência que acabara de fazer.
É a este extremo que esse filme pode levar o público. Uma obra-prima antiga, revista e transformada numa obra-prima contemporânea.
“Cisne Negro” é o Dom Casmurro de Aronofsky. Um filme para ser explorado inúmeras vezes e sempre ao gosto do freguês. A clareza que não vem ao final é o que menos importa. A arte não precisa de respostas claras. O que mais envolve é justamente  esse misto de realidade e fantasia. A dúvida que ele provoca em certas cenas, se elas estão mesmo acontecendo ou se são apenas alucinações da protagonista. Uma verdadeira crítica às variadas formas de imposições, sejam por parte dos pais ou da sociedade ou até de nós mesmos, a busca desenfreada pela perfeição e suas desastrosas consequências. A angústia , o desespero de não poder ser você mesmo, de não ter a liberdade de pensar e agir por conta própria. Com certeza vai além de uma releitura de um clássico do ballet. Simplesmente fantástico e surpreendente. Quem tiver a oportunidade de assistir, vale muito a pena.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Delicadezas




Porque  no meio dessa barulheira toda, desse lixo todo e dessa correria toda deitar e ouvir o sofisticadíssimo Jazz+Bossa da banda gaúcha Delicatessen nesse comecinho de noite, para acalmar os ouvidos e a alma, não tem preço.

















*Mais sobre a Banda:  http://www.delicatessenjazz.com/
*Ouça o álbum jazz+bossa aqui

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Abreu, Caio Fernando

Para todos aqueles que ainda esperam incessante e incansável(mente) 
pelo seu outro-eu-(des)conhecido.


"Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas. 
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para falar, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, o ver, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?
(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus.
Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço. Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã."



(Caio Fernando Abreu - Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)