quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Inventário do Ir-remediável

"(...)

Não vou perguntar por que você voltou, acho que nem mesmo você sabe, e se eu perguntasse você se sentiria obrigado a responder, e respondendo daria uma explicação que nem mesmo você sabe qual é. Não há explicação, compreende? Eu também não queria perguntar, pensei que só no silêncio fosse possível construir uma compreensão, mas não é, sei que não é, você também sabe, pelo menos por enquanto, talvez não se tenha ainda atingido o ponto em que um silêncio basta? É preciso encher o vazio de palavras, ainda que seja tudo incompreensão? Só vou perguntar por que você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo.

(...)

O tempo colocou na testa uma ruga que antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada.

(...)

Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido."


Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 4 de outubro de 2013








Nos últimos dias, ao tempo em que a primavera chegava e o frio se despedia, as lembranças se acirraram. Não só (e propriamente) porque se aproxima a data em que parti para uma nova vida, mas, sobretudo, porque flores, cores e dias lindos de sol me dão a certeza de continuidade e permanência.

Na semana que passou, entre flores, saudades e raios de sol, andava à procura de algumas horas livres pra ler um bom livro, disparadamente (e para o estranhamento de muitos) minha maior diversão. 

Assim que a rotina permitiu, fugi pra um lugar tranquilo e comecei a devorar a nova obra de Leila Ferreira, cujo título, “Viver não dói”, me pareceu bem pertinente. Lá pelas tantas folhas, me deparei com algumas poucas palavras que, juntas, definem exatamente essa sensação de permanência, que nem a morte parece ser capaz de apagar. 

Está lá, na página 175 do livro, estampada com todas as letras: memória é “um lugar sagrado onde os sentimentos não têm data para existir e a nitidez das imagens costuma ser bem maior do que as fotografias”.

À definição perfeita de Leila, permito-me (humildemente) acrescentar que a memória é o que mantém incólume a nossa essência. E é, ainda, o que nos dá alguma certeza e segurança nessa vida. Porque, para além das mudanças e turbulências que o tempo invariavelmente traz, a memória está sempre ali, pronta a nos reportar ao lugar de onde viemos, àquilo que realmente somos. Nos dias em que o chão nos falta, é ela quem, gentilmente, nos leva de volta pra casa.

sexta-feira, 3 de maio de 2013



Vai que você passe, arrastando seu passado escandaloso, recheado de tropeços e amores, arraigado em sorrisos e desaforos. Que dance a dança dos mistérios, e investigue a história dos soluços, alimente universos paralelos, e ameace o choro se ele acontecer sem consentimento.

Com sentimento...

Vai que você reze por medo, desbrave o mundo com elegância, desça do salto da esperança, só para encarar o derradeiro. Grite por ajuda ou brincadeira, gargalhe diante da fatalidade. Revire gavetas, procure tesouros escondidos em bocas alheias, venda paixões imaginárias a troco de nada e redenção. Que mude tudo de lugar só para garantir tropeço.

Caia aos pés dos recomeços.

Vai que você passe, exalando o perfume das tragédias, trançada em panos da comédia, fazendo-se de vítima da felicidade. Das obras tortas da felicidade. Da indecência da felicidade. Da sagacidade da felicidade. Da falta que faz a felicidade.

Quando ela se perde da gente.

Vai que você cometa crime, mate o dó e o ressuscite lágrima, deságue mares no chão da sala, assista chuva cair nos telhados. Deite-se no chão para alcançar o céu, varra a casa para pagar o aluguel do tempo gasto com nada. Colha segredos dos que lhe dão confiança. Cozinhe a comida para a fome das crianças que não teve, more em varandas, em quintais, em cativeiros.

Em prisões que lhe provocam medo.

Vai que você quebre a banca, as regras, a cara amarrada de quem lhe fere. Fale com o espelho sobre a imagem de quem ama. Negue ao espelho a imagem que lhe cabe. Core diante da palavra afeto, sonhe secretamente com a palavra alento, refestele-se na palavra vento. Engula palavras em verso, cuspindo-as em ritmo de tantra.

Assanhando o consentimento...

Que lhe conceda o direito de habitar meus pensamentos, de abraçar meu coração com as mãos, criar silêncios no meu dentro. Tecer a si na minha memória. Fechar a casa e ir embora.

Deixando-me a ver navios e horas... Que não passam. 







segunda-feira, 22 de abril de 2013


O que eu quero tem dias que é distante. É um mistério desvendado e outro adquirido, uma conspiração de desaforos do destino. Há quem diga que o que eu quero mora em outro mundo, e que às vezes até consigo transitar entre este e aquele universo, como se fosse um fantasma procurando abrigo.


Não se iluda! Haverá sempre alguém para lhe apontar o dedo e dizer que o que você quer é um despropósito, porque merecimento não é coisa para qualquer um feito você. Mesmo sem a menor noção do que você deseja, esse alguém desfiará um rosário de porquês para explicar que você não merece essa oferenda.

A oferenda do destino.

A oferenda doce e benevolente.

A oferenda que é o prazer de conseguir o que se quer, mesmo que em uma versão diferente do imaginado.

Sorte minha que não nasci com medo de dedos em riste e previsões que não agradam nem mesmo ao meu paladar mais criativo. E não me aborrece escutá-los dizendo as mesmas frases feitas de quem tem medo de querer. Porque o que eu quero é muito mais profundo que o medo que a maioria enfeita com uma sabedoria falseada.

O que eu quero tem cheiro de terra depois da chuva, gosto da lágrima transitando da face à boca, de uma naturalidade que não pode ser interpretada nem mesmo pelos atores dignos de um Oscar. Tem gosto das pequenas loucuras cometidas em nome dos afetos, como roubar do jardim alheio uma flor objeto de próprios delírios, para enfeitar os cabelos com essa contravenção.

O que eu quero roça dedos na pele dos segredos, provoca arrepios e o nascimento de versos, a poesia expatriada pelo pudor. Passa noite em claro, tentando encontrar solução para a saudade. E usa e abusa da felicidade, sempre que possível, porque diferente do pensam uns e outros, o que eu quero se deleita com o entusiasmo pela vida.

O que eu quero tem dias de amarrotado, roto, sonso, desbotado, debochado até. Às vezes penso que cheguei ao momento catártico de largar mão de vez dessa querença. Só que é curta a duração desse hiato, é um assopro, um susto, uma palavra escondida no silêncio, brincando de cabra-cega com as desilusões. Depois recomeço... Quero.

O que eu quero tem dias que é louco, um antes de um depois futurista. É urgência regida pelo maestro das certezas vencidas. Indelével e multifacetado querer. O que eu quero é quando, onde, é um quem que corresponde, iniludivelmente, ao que me falta aos berros em um coração pra lá de desacostumado a esquecer.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Acabou?! Que Pena!!!


É o que digo a mim mesma sempre que termino a leitura de um bom livro. Ou quando, ao final de um excelente filme, as luzes do cinema se acendem e sou obrigada a me despedir da trama e me retirar do recinto.

É que costumo me apaixonar perdidamente por alguns personagens e às vezes é difícil aceitar o fim do relacionamento (de horas ou dias) que estabeleço com eles.

Vivo sempre esse duro dilema: ao mesmo tempo em que devoro a obra ou as cenas do filme, ansiosa por descobrir o final do enredo, temo pelo fim da existência daqueles personagens, com os quais, a essa altura, já guardo profunda intimidade. E torço para que eles retornem em breve ao meu cotidiano, num segundo volume da obra, quem sabe.

Por mais completo e sublime que seja o desfecho apresentado pelo autor, custo a me conformar com o fim da existência dos personagens mais queridos. Não raro me pego pensando neles, ainda por um bom tempo, imaginando que rumo tomaram suas vidas (reais ou fictícias).

Estranho?! Talvez. Mas tenho lá minhas esquisitices mesmo.

Houve um tempo em que, confesso, tentei me livrar de algumas delas. Mas já há alguns anos cheguei à conclusão de que, sem elas (as esquisitices), eu não seria eu mesma. Afinal, nunca tive a pretensão de ser normal. Ou, ao menos, nunca tive a pretensão de me enquadrar nos moldes daquilo que a sociedade impõe como normal.

Talvez por isso eu tenha me apaixonado tanto por Ester, a última personagem com a qual convivi, ao longo da semana passada, enquanto devorava a obra intitulada "Por Linhas Tortas", de Cynthia França. Ao virar a última página do livro, sabia que sentiria falta do nosso envolvimento diário.

Após perder o pai de seu filho e seu grande amor, Miguel, durante um assalto na saída de uma agência bancária no Rio de Janeiro, quando se encontrava no terceiro mês de gravidez, Ester viu-se obrigada a trilhar novos caminhos, a descobrir novos rumos para a sua vida. E o fez, brilhantemente. Sem sucumbir aos obstáculos que a vida lhe apresentou, Ester se reergueu, admitindo para si mesma que era diferente e aprendendo a gostar disso.

Assumir aquilo que somos é, por vezes, um processo difícil e até doloroso. Sobretudo quando o que somos contraria aquilo que alguém, num belo dia, estabeleceu como certo. Ou aquilo que nos foi ensinado e imposto como sendo o melhor (ou o único) caminho a ser seguido.

Viver em conformidade com as próprias convicções, numa sociedade tão apegada a padrões de toda espécie, é no mínimo cansativo, porque nos obriga a conviver, constantemente, com o ar de espanto e a cara de estranheza daqueles que nos rodeiam. Difícil ser diferente sem se sujeitar ao olhar alheio. E o olhar alheio às vezes é cruel, porque se reveste de preconceito e rejeição.

Quanta energia despendida na inútil tentativa de explicar comportamentos que, no final das contas, em nada vão mudar o mundo. Mas, ainda assim, mil vezes o desgaste de ter que apontar, pela milésima vez (e sem qualquer esperança de ser compreendida), as razões pelas quais prefiro visitar a Índia a passar férias na Disney ou fazendo compras em Miami, em vez de optar por qualquer desses dois últimos destinos apenas para agradar a quem quer que seja, e ser incoerente comigo mesma. Afinal, não há traição pior do que aquela que praticamos contra nós mesmos.

Se é difícil ser diferente em aspectos tão bobos, fico imaginando quão árdua deve ser a rotina daqueles que rompem com padrões sociais realmente relevantes. Como os que assumem um relacionamento homoafetivo  Ou como aquelas que, por opção (ou por não terem alternativa mesmo), resolvem ter um filho sem passar pela (obrigatória) etapa do casamento. Ou, ainda, como aquele rapaz negro, morador de periferia, que sonha com um futuro melhor para si, mesmo diante de tantas negativas, e que sabemos, todas elas por conta de sua condição de pobre e negro, se forma em uma universidade (por méritos próprios e não por cotas), e hoje, ocupa um cargo elevado e de destaque, contrariando todos os "nãos" que recebera ao longo de sua vida.

Tiro o chapéu para aqueles que se aceitam e se mostram ao mundo exatamente como são, sem qualquer traço de hipocrisia e a despeito da crítica alheia. Bato palmas para aqueles que agem exatamente de acordo com aquilo que pensam e pregam, despidos de qualquer tipo de véu que lhes encubra a essência.

Não se trata de sair pelo mundo, num ato de rebeldia, expondo ideias desprovidas de qualquer fundamento simplesmente porque nos passam pela mente ou apenas para contrariar aqueles que se comportam de forma diferente.

Ser autêntico é ser coerente. É viver em consonância com aquilo em que se acredita. É ser leal e verdadeiro com seus próprios valores. É ser fiel a si mesmo. Trata-se de uma autenticidade positiva e construtiva, cujo exercício requer alto nível de desprendimento e autoconhecimento.

Essa autenticidade talvez seja exercício para poucos, porque não são muitos os que estão dispostos a assumir suas convicções, rompendo com padrões e conceitos já estabelecidos. E, de fato, nem sempre é confortável a tarefa de se despir diante dos outros, arrancando máscaras, retirando vestes. Corre-se o risco da incompreensão ferrenha, da rejeição e do isolamento. Ou, ainda, da total e fria indiferença.

O fardo é grande, em todos os casos em que o preconceito e a intolerância são predominantes. Mas não é maior do que a frustração de se levar uma vida pautada em concepções alheias, que não guardam qualquer afinidade com aquilo que realmente somos.

quinta-feira, 4 de abril de 2013


De fato, é muito difícil manter a paciência em determinados dias. Sabe aqueles em que nos levantamos e só de colocarmos os pés no chão um desafio é gerado? Dias assim.

Ao mesmo tempo, são dias como esses que nos fazem repensar nosso papel como seres humanos e suas profissões, seus comprometimentos, suas escolhas, enfim, tudo o que trazemos como bagagem por sermos as pessoas que somos.

Em dias como esses, repensamos até onde iríamos por determinadas pessoas, se realmente é necessário sustentar certas opções ou se há, sem grandes melindres ou injustiças, uma maneira de mudarmos de opinião, porque errar faz parte do repertório da vida, e às vezes há sim como melhorarmos nossas escolhas.

Nesses dias, nós direcionamos nossa atenção aos assuntos menos debulhados, como o questionamento sobre os tão bem delineados planos para o futuro. Em fato, pensar que planejamos o que seja, enquanto o dia tende a lhe impor tantas provações, nos leva a percebemos a fragilidade do definido.

Tudo parece distante e indiferente ao nosso incômodo, entre um escorregão na rua, uma exigência surreal no trabalho, a dor de cabeça que não passa nem mesmo com analgésico, a voz irritante de alguém que não conhece vírgulas e adora monólogos. Quando o café fresco não provoca a sensação de conforto de sempre ou o telefone não para de berrar por atenção.

Em dias assim, aqueles cinco minutos trancados no banheiro, só para aproveitar um tantinho de silêncio, parecem uma oportunidade de ouro. E a gentileza que outra pessoa despende conosco é imensamente bem-vinda. E observamos a nós mesmos sem as urgências corriqueiras, sem as bobagens acumuladas durante a rotina. Abordamos nossos sentimentos sem as eiras e as beiras impostas pelo exagero que consumimos em dias menos exigentes.

Tendemos a ensimesmar delírios, porque nos pegamos libertos dos limites e entregues aos rompantes da imaginação. Há quem crie, em pensamento, um tipo de fotonovela, emendando as cenas como se fossem de filme. Intercalando diálogos como se fossem autores. Misturando humor e drama e sem condições de chegar a um desfecho. Tudo fica em suspenso, como que à espera do próximo exemplar da revista.

Há dias em que precisamos da paciência como companhia com um apego desvairado. Dias em que a nossa percepção observa a nossa existência sem o deboche dos rótulos, a severidade de certas escolhas, a intermitência dedicada ao recuperar o fôlego. E tudo se mistura, levando-nos a um lugar desconhecido dentro de nós mesmos.    



                                                                                                                            

terça-feira, 26 de março de 2013

Mundo Pós-Moderno


(Por Ruleandson Do Carmo)


No começo o homem andava curvado. Precisou de algumas gerações para que conseguisse se erguer e andar. Séculos e séculos para que andássemos eretos e o homem de hoje - para alguns, o homem pós-moderno - retrocedeu e se curva: seja para usar as tecnologias que solucionam problemas que muitas vezes não existiam, seja para viver sob a ditadura de pensamentos que não são dele e o tornam escravo de si. Tão virtuoso mundo pós-moderno. Nele, chique é gastar o dinheiro que não se tem com aquilo que não se precisa. Culto é ser bilingue ou poliglota sem antes dominar com propriedade o próprio idioma. Experiência é conhecer o mundo inteiro e menos de meia dúzia de cidades do país no qual se vive. Política é quando você desliga a TV para não ver os candidatos a governar seu país, não acompanha, não se preocupa, e depois critica. Ativismo é divulgar causas pelas quais você mesmo não age. Esporte é ignorar o time para o qual se torce e tentar provar que o time adversário é pior. Vitória não é quando se vence, mas quando se derrota alguém. Conhecimento é acumular informações inúteis sobre o que você nunca vai precisar. Inteligência é ser arrogante. Ecletismo é amar vários cantores do único estilo musical que você gosta, ou pior, admirar várias coisas em um único artista. Ser grosseiro com as pessoas é ter atitude. Falsidade é como te chamam por ser feliz e educado. Autoestima é procurar desesperadamente por alguém pior do que você. Sinceridade é quando não te telefonam mais. É incoerente, mas, ser evoluído é achar que o outro é primitivo. Crentes em Deus toleram sua própria religião e rejeitam as outras. Ateus rejeitam a todas as religiões e mesmo sem ter fé em nada, ainda assim, fazem parte da nova seita mais radical do mundo. O relacionamento mais longo que as pessoas conseguem ter é com o próprio espelho. Sexo agora se chama masturbação assistida. Acreditar é duvidar o mínimo possível. Gratidão é dizer a si mesmo que o outro não fez nada demais por você. Personalidade é dizer que prefere não se definir, não se limitar, para disfarçar que não se conhece, não se importa muito nem consigo. Perdão é se convencer de que a mágoa do outro é na verdade um melodrama. Amor é o "amor da minha vida" durante os próximos quinze minutos. Amizade só enquanto eu puder tolerar o outro e me sentir melhor do que ele. Vizinhos não é mais desejável tê-los, o ideal é não ser vizinho nem daqueles que moram dentro da sua própria casa. Sexualidade não é conhecer seus desejos, é viver somente para satisfazê-los. Curtir a vida é mais importante do que viver a vida. Orgasmos são mais importantes do que abraços. Cargos são mais importantes do que valores. Corpos são mais importantes do que o conteúdo do cérebro de quem os habita. Eterno é o que dura até o próximo hit. Pensamento crítico é quando você fala mal de alguém. Para que ter um animal de estimação se você pode se casar? Discernimento é quando te chamam de dramático ou pessimista. Vicioso mundo pós-moderno do coração inflado de um cidadão nada modesto. Adeque-se. Atente-se. Encaixe-se. Ou aprenda a saber quem é você mesmo e não o que eles querem que você seja. Ser é mais do que projetar no mundo uma imagem de si. Viva e deixe viver, mas primeiro saiba (ou tente saber) o que de fato é isso.







sexta-feira, 15 de março de 2013

Narrativas Dispersas II



Feito um esquete de telenovela que poupa no diálogo, ele zanza pela madrugada do quarto, da sala, da cozinha. Nem cogita sentir autopiedade, porque sabe que, por aí, tantos outros zanzam pela madrugada, solitários que são a rodopiarem em quartos, salas, cozinhas.

Foi educado para jamais temer casa vazia, tampouco bolso vazio. O pai esbravejava, a cada infortúnio familiar: “a gente vai sair dessa porque sim!”. Apesar de admirá-lo pela ousadia da certeza, filho que era, desejava um pouco de maciez naquela realidade ouriçada. O “porque sim!” de seu pai se tornou, ao longo de uma vida, da dele, a repetição de um desejo inalcançável. Foram tantas as negativas, que a força que havia na certeza de seu pai envelheceu com ele. Enfraqueceu-se feito os ossos de seu corpo miúdo.

Esses passeios notívagos são como uma dança secreta para acalmar o espírito. De um olho já não enxerga tão bem, apesar de ainda estar na idade dos homens com energia para descobrir uma nova versão de si mesmo e fôlego para vivê-la. Então, esmera-se em manter o coração de olhos bem abertos.

Na lista dos procurados, ele certamente poderia ocupar o cargo de bom partido para mulheres prontas para casa, cama e família. “Não é de se jogar fora”, ouviu a moça dizer, arqueando suas espessas sobrancelhas, deixando claro que lhe fizera um favor ao considerá-lo apto a se embrenhar em sua carne, partilhar do título de marido dela.

Os cabelos branqueiam mais rápido do que anteontem, lembrando a ele a magia dos calendários, sendo um dos truques desse oráculo temporal - que trança dias da semana com datas - a celebração de outro ano de sua vida. Hoje, congratulações ao homem que vagueia pelos cômodos da casa. São mais de três décadas de biografia diversa despejada na poça da sua existência.

Aqui, quase no agora, ele desembrulhou o presente vigente, e por isso tantas interrogações o desassossegam.

O que não sabe a moça do favor, é que ele não precisa de aprovação para se enveredar pelo universo de outras moças que não ela. Já enfeitiçou muitas de paixão suburbana, de poesia deslavada, de companhia confundida com eterna. A algumas nomeou parceiras, ainda que compartilhasse com as ditas apenas o tempo do gosto delas em sua boca. Não lhe faltam companhia a tiracolo, chamegos, considerações. Não lhe faltam o cuidado da amante, o zelo da esposa, a devoção da deslumbrada. O que não sabem essas divas da desilusão certeira é do motivo de ele caminhar pelos cômodos da casa, arrastando a si, enquanto relembra a facilidade de acreditar que é possível se recuperar de qualquer coisa.

O que seu pai não soube lhe ensinar, e no que ele não foi autodidata, é que a vida tem seu próprio temperamento, independente do dele. E às vezes faz um movimento diferente, lançando a qualquer um de nós à direção contrária. A vida é intransigente, em alguns momentos, feito moleque birrento querendo o doce, ou como toda pessoa que não se dispõe a aceitar a diversidade da certeza.

O “porque sim!” de seu pai era apenas um lema obscuro digerido por um menino que só queria gastar tempo brincando com seu carrinho, e que às vezes engolia a dúvida já que a resposta era sempre a mesma e definitiva. A mãe até tentara educá-lo de jeito mais amansado, cochichando em seu ouvido, quando o pai estava no outro cômodo, tentando esticar o dinheiro para cobrir as contas, os salmos, os lampejos religiosos, a necessidade dela de conhecer um Deus que a tirasse desse destino apedrejado pela falta.

Somente adolescente, o olhar mais solto, o coração pronto para tamborilar experiências, ele saboreou o desprendimento, e foi junto com uma garrafa de vinho barato. Abandonou a sua história de certezas e se jogou em uma elástica, na qual cabiam todas as versões de si, onde ele não precisava definir-se, decidir-se. Encontrou no descumprimento da certeza, no seu avesso escancarado, um lugar para não acreditar em interjeição que fosse. E tudo se acalmou, aprofundou-se, ensimesmou o homem.

As décadas compartilhadas com a vida lhe deram de prêmio uma silente dolência. Lembra-se do pai com certa tristeza, da mãe, idem. Vivera sob as asas de opostos, e escolheu para si o que tem agora.

De um cômodo a outro, quarto, sala, cozinha, e as canções rodopiando pelo recinto, rescendendo à trilha sonora daquela telenovela quase sem diálogos. Pés descalços, sentindo o chão, fumaça de cigarro que pretende, dia desses, abandonar. Tragos e tréguas.

Não há como dizer ao seu pai ou a sua mãe, ambos já falecidos de suas vidas tépidas, que sente falta do conforto de seus abraços. Nem mesmo que, aos poucos, mas com indubitável dedicação, redecorou a própria vida com a distância e os devaneios. É homem amado, porque há nele o talento para arrebanhar afeto. É homem feito para ser admirado, já que constrói, a cada dia, uma carreira de criações admiráveis. Inspira a tantos, convive com tantos, mas não alcança o entendimento entre seu mundo interior e o lá de fora.

Soubesse a moça, no seu arquear de espessas sobrancelhas, alardeando a certeza que criara baseada em percepção equivocada, que este é um homem feito para ser amado, de delicadeza capaz de pacificar ventanias. Soubesse ela, certamente deitaria a cabeça no colo dele, sucumbindo aos seus afagos, suplicando por sua benquerença. Não haveria dia em que não desejaria colher um beijo, que nele não baseasse a sua biografia, que não ficasse à mercê do tempo dele. Amaria este homem sem questionar sentimento ou condição, alimentando-se da profundidade das palavras por ele ditas, dos toques por ele oferecidos, como se tocasse um instrumento quente, macio, parindo melodia inédita.

Soubesse a moça, não brincaria com fogo. Este homem, perdido pelos cômodos da casa, sabe fazer-se amar com uma facilidade indigesta aos olhos de seus desafetos. É mestre em cultivar amor pelo simples gosto de ser amado, e colhe paixões como quem arquiteta um buquê de solidões alheias. Este homem, meus caros, é mestre em amar ser amado.

Porque sim, e pronto.


terça-feira, 12 de março de 2013

Narrativas Dispersas I




Há quinze dias recebi a correspondência de Linski. Breves palavras preenchiam o pequeno pedaço de papel. Escreveu como se estivesse com pressa. Dizia: “Chegarei ao meio-dia. Teremos tempo”. Minhas mãos tremiam enquanto eu observava aquelas palavrinhas que, por muitos dias, tentei analisar. O manuscrito se tornara gasto de tanto que eu o abria e o fechava. Cheguei a colocá-lo na porta da geladeira preso por quatro imãs em forma de maçã. E, sempre que eu passava pela cozinha, eu lia e relia e parecia estar ouvindo a voz de Linski. Eu repetia em voz alta o que ele havia escrito. Ah, como me senti imponente. Então chovia e era sol. O dia estava maravilhosamente combinativo ao meu estado de espírito. Desde que recebera a correspondência, planejei todo o trajeto deste dia que é hoje. Mudei os móveis de lugar, Comprei livros, arrumei a velha escrivaninha onde Linski costumava passar horas deleitando-se em palavras. Era meu triunfo vê-lo sentado debruçado sobre seus papéis. Era seu estado criativo, costumava dizer. “Há horas em que preciso ficar sozinho”. Ele me dizia todas as coisas em seu tom imperativo. Eu o servia de chá e café. Fazia de tudo para que nada perturbasse o silêncio de Linski. E agora ele está de volta. Quantas horas irá ficar? Suspiro. Meu êxtase é imenso e sinto-me invencível. Posso sorrir. A bem da verdade, desde que recebi a correspondência, um alardeante sorriso movimenta minha face. Decidi não esconder minha alegria. Afinal, chegara o tempo de rever Linski e eu precisava celebrar sua companhia. Era como se ele já estivesse aqui.  Desde que Linski mandou-me dizer que estaria comigo, sinto sua presença. Ele está nos quadros, nas fotografias, em seu armário por tempos vazio. Ele ocupa o quarto, a cama e os lençóis exalam o aroma de Linski. Ele está mais presente que nunca. E hoje conversaremos. Ensaiei todo meu discurso. Preciso lembrar que devo agir de forma gentil e sorrir discretamente. Linski não suporta comportamentos estrondosos. Mostrarei as mudanças que fiz na casa, a tapeçaria, e não falarei a respeito de Vilma. Nada irei alarmar. Linski provavelmente irá me contar de sua vida e eu ouvirei com distinta atenção. Não usarei interjeições ou gafes exclamativas. Sequer demonstrarei surpresa. Meu porte será de um ligeiro interesse como se eu houvesse mudado meu hábito de idolatria. Estarei fervendo por dentro. Tenho certeza disso. Abortarei alegrias e atitudes furtivas por revê-lo. Poderia abraçá-lo ao invés de manter o recato que silencia prisioneiros. Eu poderia fazer soarem trombetas angelicais à chegada de Deus. Tomaríamos vinho tinto e logo estaríamos rindo espalhafatosamente. Ah, como seria bom retê-lo desta forma. Mas devo exercer neutralidade. Fingirei não ter vida. E, agora que aguardo a chegada de Linski, algo toma o lugar de minha atitude centrada. Por que não posso celebrar em uivos a chegada de Linski? Por que não posso deixar a louca rebeldia dos contentes tomar conta de mim? Por que não me desmantelar em efusivo estado de alforria? Por que não o afago de saudade? Por que devo comportar-me em retidão? Linski me desalinhou de meus desejos. Ele me entortou a vida e agora retorna grandioso esperando que eu finja discernimento justo quando me irradia a ansiosa liberdade de um largo sorriso. Não! Definitivamente não! Ele não fará isso comigo. Por anos eu caminhei na ponta dos pés para não incomodar o exílio de Linski. Agora que o tempo engoliu meu obrigatório comportamento de lealdade, por que devo me privar de viver o que sinto? Quem você pensa que é, Linski? Deus? Imperador? Um ditador em supremacia? A cólera me invade e rasgo em filetes de indignidade a correspondência de Linski. Não serei mais o bicho coagido. Vê? Liberei de mim as amarras dos acorrentados anos às suas ordens. Sou outra pessoa, Linski. Não o quero em minha casa. A vida precisa seguir, agora sem a presença real ou irreal de Linski.

E, ao meio dia, a campainha anuncia a chegada de Linski. Ninguém o recebe à porta. Ele não entende. Deveria ser recebido. Insiste algumas vezes mais e, contido em seu comedido modo perfeito, Linski retorna à rua e volta ao esquecimento. Ergo uma taça de vinho, brindo meus arroubos de euforia e não me arrependo por não tê-lo visto. Linski não faz mais sentido. Definitivamente está fora da minha vida.