quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Inventário do Ir-remediável

"(...)

Não vou perguntar por que você voltou, acho que nem mesmo você sabe, e se eu perguntasse você se sentiria obrigado a responder, e respondendo daria uma explicação que nem mesmo você sabe qual é. Não há explicação, compreende? Eu também não queria perguntar, pensei que só no silêncio fosse possível construir uma compreensão, mas não é, sei que não é, você também sabe, pelo menos por enquanto, talvez não se tenha ainda atingido o ponto em que um silêncio basta? É preciso encher o vazio de palavras, ainda que seja tudo incompreensão? Só vou perguntar por que você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo.

(...)

O tempo colocou na testa uma ruga que antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada.

(...)

Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido."


Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 4 de outubro de 2013








Nos últimos dias, ao tempo em que a primavera chegava e o frio se despedia, as lembranças se acirraram. Não só (e propriamente) porque se aproxima a data em que parti para uma nova vida, mas, sobretudo, porque flores, cores e dias lindos de sol me dão a certeza de continuidade e permanência.

Na semana que passou, entre flores, saudades e raios de sol, andava à procura de algumas horas livres pra ler um bom livro, disparadamente (e para o estranhamento de muitos) minha maior diversão. 

Assim que a rotina permitiu, fugi pra um lugar tranquilo e comecei a devorar a nova obra de Leila Ferreira, cujo título, “Viver não dói”, me pareceu bem pertinente. Lá pelas tantas folhas, me deparei com algumas poucas palavras que, juntas, definem exatamente essa sensação de permanência, que nem a morte parece ser capaz de apagar. 

Está lá, na página 175 do livro, estampada com todas as letras: memória é “um lugar sagrado onde os sentimentos não têm data para existir e a nitidez das imagens costuma ser bem maior do que as fotografias”.

À definição perfeita de Leila, permito-me (humildemente) acrescentar que a memória é o que mantém incólume a nossa essência. E é, ainda, o que nos dá alguma certeza e segurança nessa vida. Porque, para além das mudanças e turbulências que o tempo invariavelmente traz, a memória está sempre ali, pronta a nos reportar ao lugar de onde viemos, àquilo que realmente somos. Nos dias em que o chão nos falta, é ela quem, gentilmente, nos leva de volta pra casa.