quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Feeling Good

Hoje Nina Simone faz as honras da casa!




'It's a new dawn
It's a new day
It's a new life
For me
And I'm feeling good...'

domingo, 27 de novembro de 2011

Da Coragem




Coragem não é ausência de medo, veja bem. Coragem é uma forma de desprender o sonho da vida. Não deixa de ser uma estratégia para andar com mais leveza, mais equilíbrio. Dia por dia, ano por ano, a gente cai e levanta, limpa a poeira da roupa, limpa o choro do rosto, solta o coração na rua e prende o suspiro no peito. Vai apurando a fé pra tornar-se uma pessoa mais generosa consigo mesma. Toda queda ou salto vale como experiência pra grande oportunidade de estarmos aqui. Tempo é ouro, aprendi, não dá pra desperdiçar assim, de qualquer jeito. 
Coragem no final das contas é envolver-se. Coragem às vezes é desapego.
Coragem é olhar pro espelho no fim do dia e perguntar: - Será que a gente tomou a decisão certa? 
E a resposta vir como um sorriso, da mesma pessoa, essa de frente pro espelho. E lembrar-se do momento que espantou o tédio com um sorriso e desculpou-se com um abraço. Que disse coisas interessantes com o olhar, porque aprendeu que silêncios falam mais alto. Que chegou em um lugar que sempre foi o 'lá' que queria estar, e gostar muito disso. Responder que foi um dia rico, que você tornou-se uma pessoa mais rica, mais rica de amor. Tenha coragem de se olhar no espelho e conseguir agradecer pelo que vê. Todo dia.






sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Da Crença

E apesar dos pesares, ela segue sendo como é: leve. Tentando ser livre das armadilhas que cegam, que enganam, que fazem mal. Porque desde muito cedo ela aprendeu a ser doce. Inteira. Autêntica. Intensa. Ela acredita, embora há tanta gente que prove no dia-a-dia que não dá para confiar. Que é perigoso se entregar. Que é “furada” gostar. Mas apesar dos pesares, ela segue acreditando que há pessoas boas. Verdadeiras. Inteiras. Intensas. Ela acredita. E é essa crença que a move. Que a faz levantar a cada rasteira, a cada tombo. Porque lá no fundo ela sabe: tudo tem uma razão de ser. E se em alguns dias chove, é porque nos demais o sol há de brilhar ainda mais bonito, fazendo da tempestade apenas uma lembrança.

domingo, 20 de novembro de 2011

Do que não se pode fugir

Há de se ter muita coragem para fazer escolhas. 
Deixar de lado uma opção é correr o risco de chegar mais lá na frente acreditando que era a melhor. Porque a gente tem mesmo esse lado de não acreditar no presente. O mais curioso é que, quando a gente volta pro passado, nunca o idealiza como ele realmente era. Mas como a gente queria que ele fosse. 
É preciso aprender: não há vida idealizada. Há vida. E é aí que dá pra fazer o melhor que a gente pode. Pra poder chegar lá na frente e não querer voltar, mas falar que 'pode não ter sido o mais bonito, mas foi o melhor que pude'. É aí que entra a tal da escolha. Escolhas que podem dar errado. Que podem dar certo, ou então que deram errado pra dar certo sem saber. Afinal, a vida não acaba depois da morte. Morrer, acreditem: é só uma passagem. E viver pode ser bem mais difícil do que se imagina. Mas isso também é só uma pequena escolha.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Despertencer


Parto do princípio de que não pertenço.


Ao não pertencer, abro mão do currículo que temos de carregar, diariamente, como provas cruciais de quem somos e aonde podemos chegar. Mas não me iludo, sei que se trata de um ínfimo instante a experimentar desse desapego; que provarei de goles dele durante a vida, e que há um duro trabalho a ser feito para despertencer de vez.


Despertencer de quem seria fosse o avesso de quem sou; e das branduras falseadas que nada mais fazem do que perfumar a dor ferina dos desfechos. Esse desapego pelo certo, calculado; pelos calendários e feriados; pelas portas de entrada que são travadas depois que nos engolem. As janelas voltadas ao horizonte que enxergamos feito quadro, quando deveríamos pertencer à pintura.


Os temporais domesticados.


Muitas vezes nos vestimos com amarras, como fossem redes capazes de nos livrar dos tombos, segurando-nos a centímetros poucos do chão. E então, passamos a viver assim, centímetros de distância nos separando da experiência de sentir das dores aos prazeres; a crueza afastada pelos panos finos que roçam nossa pele, disfarçados de conforto merecido, mas fazendo a vez de muros pessoais, íntimos.


Desaprendi a conjugar promessas, por isso não mais as profiro.


Desaprender é bem menos dolorido do que despertencer, porque ao desaprender destruímos preceitos incapazes de confortarem nossas solidões; desenterramos pesares que se esvanecem ao simples encontro com a nossa conscientização de como são dispensáveis. Desaprender nos permite viajar a sós e aceitar companhia no caminho; olhar o mar de baixo para cima (do fundo para o raso infinito) e encontrar uma nova versão do céu. Um céu de liquidez apaziguadora.


Despertencer atiça os demônios particulares, os convida à mesa; um jantar servido às pressas que alimenta, quase que igualmente, a coragem e o temor por uma possível incapacidade de se desvencilhar dos rótulos, dos desafetos, das limitações. Mas também despe dos véus a capacidade de nos esvaziarmos da condição de aprisionados por nós mesmos, já que nos são oferecidas tais opções com clareza que não se alcança ao lidarmos somente com um lado de quem somos. Ao cultivarmos a possibilidade de não pertencermos, vemos a nós mesmos inteiros, e podemos decidir o caminho a seguir.


Despertencer não significa se ausentar de tudo e de todos, mas se aproximar de si e de outros sem desculpas, preceitos, manobras. Sem antever e definir. É a busca pela intimidade que não intimida, mas engrandece, renova afetos.


Ao despertencer o silêncio me afaga os cabelos. A respiração é tão lenta, como se fizesse hora para não chegar adiantada ao destino; e as cores bocejam uma preguiça esbranquiçada, enquanto cada gesto tem o peso de todas as escolhas que já fiz nessa vida. E no momento mais terno desse despertar, sinto-me escorrendo pelas paredes, batucando nos telhados, abraçando prédios, pessoas, precipícios, estradas, campos; derrubando cercas, rótulos, prisões.

Feito um temporal que é impossível se domesticar.

domingo, 13 de novembro de 2011

Clariceando...

Clarice Lispector por Caio Fernando Abreu



"Em 1971, li um dia no jornal que ela estava em Porto Alegre pra dar uma entrevista na TV e que depois ia autografar seus livros. Peguei todos os livros que tinha da Clarice e corri para o estúdio. Deparei, então, com uma mulher linda, enigmática, silenciosa. Aquela gente toda em torno dela e ela absolutamente quieta, sentada em uma cadeira com aquelas unhas vermelhas. Não tive coragem de me aproximar e a fiquei olhando a distância. De repente, ela me chamou e, com aquela voz cheia de erres presos, me disse: ‘Você senta comigo. Você se parece com dom Quixote e deve ficar ao meu lado, porque eu estou muito assustada”... Pouco tempo depois, viajei ao Rio de Janeiro para o lançamento de Limite branco. Assim que cheguei ao hotel, telefonei para ela. ‘Eu quero ser a madrinha dessa noite’, ela me disse. Apareceu na livraria toda de preto e ficou a noite toda sentada ao meu lado, em silêncio absoluto. De vez em quando, ela se voltava para mim e, com aquela voz rouca, sussurrava: ‘Você é o Quixote! Você é o Quixote!'. Nessa época Clarice estava escrevendo Água viva. Nos dias seguintes, ela me telefonou várias vezes me convidando para visitá-la em seu apartamento. Quando eu chegava na portaria, o porteiro dizia: ‘Dona Clarice não está’. Ela estava em casa, mas deixava o porteiro com essa ordem de barrar as visitas e se esquecia de mim... Clarice não gostava muito de viajar. Mas um dia, numa visita a Porto Alegre para um encontro literário, ela me telefonou. ‘Quixote, estou aqui’,  me disse. ‘Venha me levar a algum lugar diferente, porque eu não gosto de escritores’. Fomos, então, caminhar pela Rua da Praia. Em um bar, pedimos um café, que foi servido no copo. ‘Numa xícara, por favor’, ela pediu. O rapaz, paciente, fez a troca. Ela tomou o café em absoluto silêncio. Pensei que estivesse aborrecida. De repente, ela me perguntou: ‘Como é mesmo o nome dessa cidade?’. Clarice já estava em Porto Alegre há três dias! Mas isso não importava, ela habitava mesmo o planeta Lispector... Chegou uma hora que em que eu me proibi de ler Clarice Lispector. Seus livros me provocavam a sensação de que tudo já foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito”.

Fonte: O Estado de São Paulo, 09/12/1995 




Agora Caio fala sobre Clarice em carta enviada à  escritora Hilda Hilst



9/12/1970

Hildinha,  
A  carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu
Caio."

Fonte: Livro "Cartas" de Caio Fernando Abreu.






Clarice é presença dentro e fora da pele. Lê-la é soltar a alma ao ar livre. É aprender a respirar no fundo do mar, ou no espaço sideral. No início, morre-se de asfixia.  Mas, logo depois, a atmosfera de Clarice invade a antiga forma de viver, e então se necessita respirá-la para estar vivo.
Clarice não se define, Clarice se intui. Procurem- na nas reticências, onde pode revelar-se em uma timidez escancarada ao mesmo tempo que mostra-se audaciosa e discreta. É lá onde Clarice reside, contraditória e indefinível: nas entrelinhas.


A seguir, última entrevista dada por Clarice Lispector ao jornalista Junior Lerner para o programa Panorama em 1977:





quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tradução

desculpe mas não é carta de amor
não é um lamento
nem desvario
não é poema erótico
arcaico
híbrido
nem é bilhete pregado na geladeira
post-it fixado no espelho
feito lembrete desajeitado
tampouco é um livro
aberto sobre a cama
com trecho marcado
gritando leia-me

não é recado que menino grita
desculpe
mas também não é diário
caderneta de despesas
de mercado
não é papel perfumado
sem letras expostas
mas repleto de significado
nem mesmo pensamento
mancomunado
com a liturgia sobre a paixão
ou verbo alucinado
ecoando no delírio do ébrio

sinto muito
mas não são respostas às perguntas
no caderno de enquete
não tem a ver com formulário
burocracia
nem mesmo com a burocracia do gostar
nem chega perto
de ser jogo
porque perde o fôlego
antes mesmo de se esbaldar
na mesmice
não é premonição
não é sintoma

não é bombom sobre o criado-mudo
deixado pelo outro
que parte assim que o dia aparece
não tenta adocicar o que fica
quem fica
ou romantizar a falta
ela tão habituada a excitar
a vaidade
de quem a cultiva
não é baralho cigano
nem conselho
não é boleto bancário
ou receita médica

portanto
acomode-se
deite o olhar sobre o que é
sem ser de fato
deixe de procurar sentido
onde sempre quis
que a ilusão reinasse
deixe-se levar ao quarto
quinto
sexto
a todos os andares e andamentos
exorcizando o inquietante desejo
pela tradução.