sábado, 29 de outubro de 2011

Olhar de dentro


Essa gana por ser necessário. Olhar nos olhos do outro e ver a si mesmo: âncora, abraço condimentado de afeto. Querer a si reinventado na história que não sua. Surrupiar sorrisos que não lhe cabem. Viver o pulso do outro. O ritmo alheio. E neste ínterim, falsificar buquês de ousadias, através de vivências afanadas de livros de filosofia. Incandescer a gélida fração de mágoa que lhe custou anos de solidão copiosa e saudade do desconhecido. E no fundo: enviuvar dos relâmpagos. Engravidar das ideias. Suicidar mesquinharias. Abortar rótulos. Dar longos beijos de língua em amores platônicos, reinventar-se, após se dar conta que não se é o outro, mas com ele aprendeu a reconhecer a si mesmo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

"O peso que a gente leva"




Olho ao meu redor e descubro que as coisas que quero levar não podem ser levadas. Excedem aos tamanhos permitidos. Já imaginou chegar ao aeroporto carregando o colchão para ser despachado?

As perguntas são muitas: E e se eu tiver vontade de ouvir aquela música? E o filme que costumo ver de vez em quando, como se fosse a primeira vez?

Desisto. Jogo o que posso no espaço delimitado para minha partida e vou. Vez em quando me recordo de alguma coisa esquecida, ou então, inevitavelmente concluo que mais da metade do que levei não me serviu pra nada.

É nessa hora que descubro que partir é experiência inevitável de sofrer ausências. E nisso mora o encanto da viagem. Viajar é descobrir o mundo que não temos. É o tempo de sofrer a ausência que nos ajuda a mensurar o valor do mundo que nos pertence.

E então descobrimos o motivo que levou o poeta cantar: “Bom é partir. Bom mesmo é poder voltar!” Ele tinha razão. A partida nos abre os olhos para o que deixamos. A distância nos permite mensurar os espaços deixados. Por isso, partidas e chegadas são instrumentos que nos indicam quem somos, o que amamos e o que é essencial para que a gente continue sendo. Ao ver o mundo que não é meu, eu me reencontro com desejo de amar ainda mais o meu território. É conseqüência natural que faz o coração querer voltar ao ponto inicial, ao lugar onde tudo começou.

É como se a voz identificasse a raiz do grito, o elemento primeiro.

Vida e viagens seguem as mesmas regras. Os excessos nos pesam e nos retiram a vontade de viver. Por isso é tão necessário partir. Sair na direção das realidades que nos ausentam. Lugares e pessoas que não pertencem ao contexto de nossas lamúrias. 

Ver o sofrimento de perto, tocar na ferida que não dói na nossa carne, mas que de alguma maneira pode nos humanizar.

Andar na direção do outro é também fazer uma viagem. Mas não leve muita coisa. Não tenha medo das ausências que sentirá. Ao adentrar o território alheio, quem sabe assim os seus olhos se abram para enxergar de um jeito novo o território que é seu. Não leve os seus pesos. Eles não lhe permitirão encontrar o outro. Viaje leve, leve, bem leve. Mas se leve.

Padre Fábio de Melo

domingo, 9 de outubro de 2011

Carência


Careço da palavra sussurrada, das manhãs cinzas conduzidas à base de filmes e pipoca, da mão estendida à espera do cumprimento, dos discos que um dia foram imprescindíveis, não apenas colecionáveis. E chapéus. Sou pessoa apaixonada por chapéus e que raramente os usa. Careço de ser capaz de usar chapéus, de dançar nas ruas com meus chapéus coloridos. De ser a moça doida dos chapéus engraçados.

Careço da presença que não me culpe pelas culpas que já reconheço em mim. E que ela saiba fazer café, porque ainda não sei viver sem. Um dia aprendo... quem sabe. E de cortinas se abrindo no teatro, das telas de cinema, e de frases de efeito que só fazem efeito na gente quando ditas com o gosto bom do sentimento verdadeiro.

Acontece de eu carecer de mim mesma, porque às vezes me desabito, saio de mim e nem me olho de fora, apenas me afasto e o mundo segue sem me perceber arredia, à beira da vida, simulando frieza que não sei sentir.

E do que mais careço é da gentileza. Soubéssemos todos do poder de transformação que ela outorga, talvez fosse possível vivermos o estar em paz com a vida que levamos.

Careço dessa leveza... e da canção.


domingo, 2 de outubro de 2011





Muitas ruas, muita gente. Muito rápido.
Metrô. Saúde, Tucuruvi, Jabaquara.
O delicioso mundo das padarias e dos shopping centers.
Vila Madalena e Pompéia como amante e esposa. Uma serve pra sonhar, a outra é pra viver a vida. Ficam as duas eternamente se provocando e a gente achando graça, porque não se pode amar uma sem a outra.
A fria e bela menina Av. Paulista. Arrebatando olhares e trincando ossos. Linda de espantar, abrindo-se toda, iluminada pelo céu de inverno. Louca de pedra, literalmente.
Augusta. Cinema, putas desbotadas-coloridas, música e seres exóticos. Longa e crua. Marco da profanação.
O Maravilhoso Mercado Mágico Central. Frutas paradisíacas, bancas pictóricas, monumentais sanduíches de mortadela. Dá vontade de lamber o chão.
Estação da Luz. Transcendental. Ecoando abraços, lágrimas e sorrisos. O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro e da despedida de gerações. Os Brasis e os mundos todos lá. O coração aperta e nem se dá conta que assim transborda mais.
Tudo enorme para nós formiguinhas.
Cracolândia. De costas pra Luz, o sobejo de coisas que imagino um dia terem sido gente. Ao meio dia, cardápio de putas na casa de tolerância: loira triste; nordestina arrependida; gorda sentada. Aviso: Puta alegre tem, mas acabou.
Que nem a felicidade aqui.
Desço a Consolação só pra me perder enquanto olho os aviões.
Me acho entre guitarras e violões na Teodoro Sampaio.
Sobe e desce na Santa Efigênia atrás d'um megafone.
Não quero nenhuma roupa da José Paulino. Não quero nenhuma quinquilharia da 25 de Março.
Mas a Liberdade eu quis! Quis, quis, quis. Comi, cheirei, comprei a Liberdade pra mim, entre nipônicos delírios consumistas e orgasmos gastronômicos. Explosão sensorial. E viva a imigração japonesa. Afasta a morte essa tal de Liberdade.
Descer a Serra rumo ao litoral é nutrir os olhos e desentupir os ouvidos. Mas o mar é feio, e eu sou cosmopolita. Deu saudade da cidade cinza, e das luzes embaçadas no frio. Talvez porque nela as cores conheçam seu verdadeiro valor.
Quem vive em meio ao caos de São Paulo, talvez carregue dentro de si esse mesmo caos.
Mas valeu a pena sentir o coração fechar e novamente se encher de sol ao atravessar os túneis da Estrada de Santos.
Ao regressar havia um homem de paletó dando voltas num poste como Fred Asteire, e tudo fez sentido. Talvez porque era domingo. Talvez porque era Sampa.
Pelas avenidas, paredões de vidraças em prédios psicodélicos. Prédios estratosféricos. Históricos. Coloridos. Decadentes. Babilônicos.
Babel. Todo mundo é daqui. Aqui ninguém tem rosto, e como é grande e esmagadora a sensação de sermos um só.
Aqui o absurdo toma forma e fica até bonito, muitas vezes.
Aqui a deselegância é discreta, e os narcisos não têm espelho.
Porque é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso.
Welcome to Concrete Jungle.
The living is hardest, mas é incrível aqui.
Se jogue no grosso fluxo que alimenta e doe toda vida quanto for possível a esse monstro feito de pedra, sangue, tempo e luz.
E mesmo que não entenda nada, as coisas que acontecerão no seu coração traduzirão a dura poesia concreta dessa cidade.
E é depressa que você aprende a chamá-la de realidade.