terça-feira, 12 de março de 2013

Narrativas Dispersas I




Há quinze dias recebi a correspondência de Linski. Breves palavras preenchiam o pequeno pedaço de papel. Escreveu como se estivesse com pressa. Dizia: “Chegarei ao meio-dia. Teremos tempo”. Minhas mãos tremiam enquanto eu observava aquelas palavrinhas que, por muitos dias, tentei analisar. O manuscrito se tornara gasto de tanto que eu o abria e o fechava. Cheguei a colocá-lo na porta da geladeira preso por quatro imãs em forma de maçã. E, sempre que eu passava pela cozinha, eu lia e relia e parecia estar ouvindo a voz de Linski. Eu repetia em voz alta o que ele havia escrito. Ah, como me senti imponente. Então chovia e era sol. O dia estava maravilhosamente combinativo ao meu estado de espírito. Desde que recebera a correspondência, planejei todo o trajeto deste dia que é hoje. Mudei os móveis de lugar, Comprei livros, arrumei a velha escrivaninha onde Linski costumava passar horas deleitando-se em palavras. Era meu triunfo vê-lo sentado debruçado sobre seus papéis. Era seu estado criativo, costumava dizer. “Há horas em que preciso ficar sozinho”. Ele me dizia todas as coisas em seu tom imperativo. Eu o servia de chá e café. Fazia de tudo para que nada perturbasse o silêncio de Linski. E agora ele está de volta. Quantas horas irá ficar? Suspiro. Meu êxtase é imenso e sinto-me invencível. Posso sorrir. A bem da verdade, desde que recebi a correspondência, um alardeante sorriso movimenta minha face. Decidi não esconder minha alegria. Afinal, chegara o tempo de rever Linski e eu precisava celebrar sua companhia. Era como se ele já estivesse aqui.  Desde que Linski mandou-me dizer que estaria comigo, sinto sua presença. Ele está nos quadros, nas fotografias, em seu armário por tempos vazio. Ele ocupa o quarto, a cama e os lençóis exalam o aroma de Linski. Ele está mais presente que nunca. E hoje conversaremos. Ensaiei todo meu discurso. Preciso lembrar que devo agir de forma gentil e sorrir discretamente. Linski não suporta comportamentos estrondosos. Mostrarei as mudanças que fiz na casa, a tapeçaria, e não falarei a respeito de Vilma. Nada irei alarmar. Linski provavelmente irá me contar de sua vida e eu ouvirei com distinta atenção. Não usarei interjeições ou gafes exclamativas. Sequer demonstrarei surpresa. Meu porte será de um ligeiro interesse como se eu houvesse mudado meu hábito de idolatria. Estarei fervendo por dentro. Tenho certeza disso. Abortarei alegrias e atitudes furtivas por revê-lo. Poderia abraçá-lo ao invés de manter o recato que silencia prisioneiros. Eu poderia fazer soarem trombetas angelicais à chegada de Deus. Tomaríamos vinho tinto e logo estaríamos rindo espalhafatosamente. Ah, como seria bom retê-lo desta forma. Mas devo exercer neutralidade. Fingirei não ter vida. E, agora que aguardo a chegada de Linski, algo toma o lugar de minha atitude centrada. Por que não posso celebrar em uivos a chegada de Linski? Por que não posso deixar a louca rebeldia dos contentes tomar conta de mim? Por que não me desmantelar em efusivo estado de alforria? Por que não o afago de saudade? Por que devo comportar-me em retidão? Linski me desalinhou de meus desejos. Ele me entortou a vida e agora retorna grandioso esperando que eu finja discernimento justo quando me irradia a ansiosa liberdade de um largo sorriso. Não! Definitivamente não! Ele não fará isso comigo. Por anos eu caminhei na ponta dos pés para não incomodar o exílio de Linski. Agora que o tempo engoliu meu obrigatório comportamento de lealdade, por que devo me privar de viver o que sinto? Quem você pensa que é, Linski? Deus? Imperador? Um ditador em supremacia? A cólera me invade e rasgo em filetes de indignidade a correspondência de Linski. Não serei mais o bicho coagido. Vê? Liberei de mim as amarras dos acorrentados anos às suas ordens. Sou outra pessoa, Linski. Não o quero em minha casa. A vida precisa seguir, agora sem a presença real ou irreal de Linski.

E, ao meio dia, a campainha anuncia a chegada de Linski. Ninguém o recebe à porta. Ele não entende. Deveria ser recebido. Insiste algumas vezes mais e, contido em seu comedido modo perfeito, Linski retorna à rua e volta ao esquecimento. Ergo uma taça de vinho, brindo meus arroubos de euforia e não me arrependo por não tê-lo visto. Linski não faz mais sentido. Definitivamente está fora da minha vida.

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