sexta-feira, 15 de março de 2013

Narrativas Dispersas II



Feito um esquete de telenovela que poupa no diálogo, ele zanza pela madrugada do quarto, da sala, da cozinha. Nem cogita sentir autopiedade, porque sabe que, por aí, tantos outros zanzam pela madrugada, solitários que são a rodopiarem em quartos, salas, cozinhas.

Foi educado para jamais temer casa vazia, tampouco bolso vazio. O pai esbravejava, a cada infortúnio familiar: “a gente vai sair dessa porque sim!”. Apesar de admirá-lo pela ousadia da certeza, filho que era, desejava um pouco de maciez naquela realidade ouriçada. O “porque sim!” de seu pai se tornou, ao longo de uma vida, da dele, a repetição de um desejo inalcançável. Foram tantas as negativas, que a força que havia na certeza de seu pai envelheceu com ele. Enfraqueceu-se feito os ossos de seu corpo miúdo.

Esses passeios notívagos são como uma dança secreta para acalmar o espírito. De um olho já não enxerga tão bem, apesar de ainda estar na idade dos homens com energia para descobrir uma nova versão de si mesmo e fôlego para vivê-la. Então, esmera-se em manter o coração de olhos bem abertos.

Na lista dos procurados, ele certamente poderia ocupar o cargo de bom partido para mulheres prontas para casa, cama e família. “Não é de se jogar fora”, ouviu a moça dizer, arqueando suas espessas sobrancelhas, deixando claro que lhe fizera um favor ao considerá-lo apto a se embrenhar em sua carne, partilhar do título de marido dela.

Os cabelos branqueiam mais rápido do que anteontem, lembrando a ele a magia dos calendários, sendo um dos truques desse oráculo temporal - que trança dias da semana com datas - a celebração de outro ano de sua vida. Hoje, congratulações ao homem que vagueia pelos cômodos da casa. São mais de três décadas de biografia diversa despejada na poça da sua existência.

Aqui, quase no agora, ele desembrulhou o presente vigente, e por isso tantas interrogações o desassossegam.

O que não sabe a moça do favor, é que ele não precisa de aprovação para se enveredar pelo universo de outras moças que não ela. Já enfeitiçou muitas de paixão suburbana, de poesia deslavada, de companhia confundida com eterna. A algumas nomeou parceiras, ainda que compartilhasse com as ditas apenas o tempo do gosto delas em sua boca. Não lhe faltam companhia a tiracolo, chamegos, considerações. Não lhe faltam o cuidado da amante, o zelo da esposa, a devoção da deslumbrada. O que não sabem essas divas da desilusão certeira é do motivo de ele caminhar pelos cômodos da casa, arrastando a si, enquanto relembra a facilidade de acreditar que é possível se recuperar de qualquer coisa.

O que seu pai não soube lhe ensinar, e no que ele não foi autodidata, é que a vida tem seu próprio temperamento, independente do dele. E às vezes faz um movimento diferente, lançando a qualquer um de nós à direção contrária. A vida é intransigente, em alguns momentos, feito moleque birrento querendo o doce, ou como toda pessoa que não se dispõe a aceitar a diversidade da certeza.

O “porque sim!” de seu pai era apenas um lema obscuro digerido por um menino que só queria gastar tempo brincando com seu carrinho, e que às vezes engolia a dúvida já que a resposta era sempre a mesma e definitiva. A mãe até tentara educá-lo de jeito mais amansado, cochichando em seu ouvido, quando o pai estava no outro cômodo, tentando esticar o dinheiro para cobrir as contas, os salmos, os lampejos religiosos, a necessidade dela de conhecer um Deus que a tirasse desse destino apedrejado pela falta.

Somente adolescente, o olhar mais solto, o coração pronto para tamborilar experiências, ele saboreou o desprendimento, e foi junto com uma garrafa de vinho barato. Abandonou a sua história de certezas e se jogou em uma elástica, na qual cabiam todas as versões de si, onde ele não precisava definir-se, decidir-se. Encontrou no descumprimento da certeza, no seu avesso escancarado, um lugar para não acreditar em interjeição que fosse. E tudo se acalmou, aprofundou-se, ensimesmou o homem.

As décadas compartilhadas com a vida lhe deram de prêmio uma silente dolência. Lembra-se do pai com certa tristeza, da mãe, idem. Vivera sob as asas de opostos, e escolheu para si o que tem agora.

De um cômodo a outro, quarto, sala, cozinha, e as canções rodopiando pelo recinto, rescendendo à trilha sonora daquela telenovela quase sem diálogos. Pés descalços, sentindo o chão, fumaça de cigarro que pretende, dia desses, abandonar. Tragos e tréguas.

Não há como dizer ao seu pai ou a sua mãe, ambos já falecidos de suas vidas tépidas, que sente falta do conforto de seus abraços. Nem mesmo que, aos poucos, mas com indubitável dedicação, redecorou a própria vida com a distância e os devaneios. É homem amado, porque há nele o talento para arrebanhar afeto. É homem feito para ser admirado, já que constrói, a cada dia, uma carreira de criações admiráveis. Inspira a tantos, convive com tantos, mas não alcança o entendimento entre seu mundo interior e o lá de fora.

Soubesse a moça, no seu arquear de espessas sobrancelhas, alardeando a certeza que criara baseada em percepção equivocada, que este é um homem feito para ser amado, de delicadeza capaz de pacificar ventanias. Soubesse ela, certamente deitaria a cabeça no colo dele, sucumbindo aos seus afagos, suplicando por sua benquerença. Não haveria dia em que não desejaria colher um beijo, que nele não baseasse a sua biografia, que não ficasse à mercê do tempo dele. Amaria este homem sem questionar sentimento ou condição, alimentando-se da profundidade das palavras por ele ditas, dos toques por ele oferecidos, como se tocasse um instrumento quente, macio, parindo melodia inédita.

Soubesse a moça, não brincaria com fogo. Este homem, perdido pelos cômodos da casa, sabe fazer-se amar com uma facilidade indigesta aos olhos de seus desafetos. É mestre em cultivar amor pelo simples gosto de ser amado, e colhe paixões como quem arquiteta um buquê de solidões alheias. Este homem, meus caros, é mestre em amar ser amado.

Porque sim, e pronto.


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