segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sem Querer...

se os talheres que você usava não esbarrassem no prato, sem querer, fazendo aquele ruído que sempre me arrepiava os pêlos dos braços, eu me esqueceria que existia alguém por perto. se não fosse o barulho irritante dos seus garfo e faca encostando no prato de louça eu não me lembraria que havia alguém na outra cadeira comendo rápido. enchendo a boca como um animal faminto. engolindo suas garfadas, quase inteiras, sem mastigar. tentando abreviar, com sua rapidez estúpida, a duração dos nossos jantares. dos nossos encontros diários, há muito, transformados em silêncios absolutos. se os seus pés não encostassem nos meus, sem querer, debaixo das cobertas, eu me esqueceria que havia alguém ao meu lado. se eu não sentisse seu calcanhar gelado esbarrando na minha perna ou nos meus pés, no meio da madrugada, eu não me lembraria de sua presença. se eu não sentisse seu cheiro ao bater os travesseiros pela manhã, talvez pensasse que tivesse dormido sem ninguém por perto. talvez me esquecesse de sua existência. é só por isso que não choro. é só por isso que não me tranco em casa, com as janelas fechadas. eu já estava sozinha muito antes. antes da porta batendo. antes da chegada do seu elevador ao térreo. eu já estava sozinha antes de você embolar suas roupas em sacos de lixo, enfiar seus livros em uma caixa de papelão e levar seus discos em duas sacolas de supermercado. você já tinha me obrigado a esquecer da sua voz. do seu jeito. do seu nome. talvez tenha sido sem querer. é por isso que não choro. porque nada mudou. ver você, pela janela semi-aberta, indo embora sem olhar para trás, apenas oficializa a minha condição. agora estou sozinha para os outros. não apenas para mim.


Eduardo Baszczyn (Com adaptações)

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